Nossa Senhora em seu manto azul
<div><tinymce class="clickTinyMCE" title="{'nm_midia_inter_thumb1':'http://www.folha1.com.br/_midias/png/2017/11/16/170x96/1_23730864_10159540001100321_1046558425_o-894416.png', 'id_midia_tipo':'2', 'id_tetag_galer':'', 'id_midia':'5a0e16d78218a', 'cd_midia':894422, 'ds_midia_link': 'http://www.folha1.com.br/_midias/png/2017/11/16/487x377/1_23730864_10159540001100321_1046558425_o-894416.png', 'ds_midia': '', 'ds_midia_credi': '', 'ds_midia_titlo': '', 'cd_tetag': '1', 'cd_midia_w': '487', 'cd_midia_h': '376', 'align': 'Left'}"><figure class="Left" style="width:487px;height:376px;">
<img src="http://www.folha1.com.br/_midias/png/2017/11/16/487x377/1_23730864_10159540001100321_1046558425_o-894416.png" alt="Nossa senhora e seu manto azul" width="487" height="376">
<figcaption>
Nossa senhora e seu manto azul
</figcaption>
</figure></tinymce>Éramos vizinhas e quase todos os dias quando saía de casa, me encontrava com ela na ladeira que dá acesso ao meu prédio. Eu, desleixada e distraída, quase sempre sem batom, quase sempre com o celular nas mãos. Descia a rua feito um foguete, atrasada para compromissos sem importância e com os olhos na tela e a cabeça nas mensagens e curtidas virtuais.</div>
<div>Diferente de mim, ela estava sempre impecavelmente maquiada. Como se acordasse e a primeira coisa que fizesse, fosse colocar um sonho no rosto em forma de cor. Igualmente a mim, ela vivia absorta ao cotidiano. Com seu olhar longe, pouco ou quase nada interagia com os transeuntes.</div>
<div>Sua atenção era para os perigos da rua. O resto, todo o resto, podia esperar.</div>
<div>Nunca soube seu nome. Nunca lembrei de perguntá-lo.</div>
<div>Fernanda. Hoje eu sei. Preferia nunca ter sabido.</div>
<div>Por poucas vezes, tentei puxar uma conversa. Saber porque estava na rua, se tinha família próxima. Se estava com fome. Uma dessas vezes, dei a ela um batom que vivia há muitos perdido na minha bolsa.</div>
<div>Ela sorriu. Ela sempre sorria e logo depois, sumia do rosto deixando apenas o sorriso congelado em forma de disfarce. Para voar bem longe das questões terrenas de Copacabana.</div>
<div>Um dia ela sumiu de verdade. De sorriso e corpo. Não dormia na ladeira da Coelho Cintra, nem no matagal próximo ao Rio Sul. Achei que tivesse morrido. Ou reencontrado a família.</div>
<div>Depois de um bom tempo, apareceu barriguda. Estava arredia. Não deixava a gente se aproximar. Conversava sozinha com a veemência dos que carregam a dor. Tinha parado de sorrir, mas ainda usava maquiagem. Ainda se vestia do sonho diário para enfrentar a vida.</div>
<div>E eu, sempre distraída, sempre preocupada com reuniões e encontros sem importância, desencontrei do tempo que nos afastou.</div>
<div>Não sei o que foi feito daquele feto. Não sei o que foi feito daquele corpo. Daquele sorriso. E eu só me importava com isso, nos breves instantes em que cruzávamos uma com a outra, quando eu abria mão de olhar para o meu celular para fitá-la.</div>
<div>Ela já não dormia mais nos arredores. E de pouco em pouco, de quando em quando, vi sua barriga crescer e decrescer.</div>
<div>Agora, só encontrávamos quando eu passava próximo à Duvivier. Ficava por ali, na Nossa Senhora de Copacabana, com sacolas de panelas bem ariadas, suas roupas e maquiagens.</div>
<div>Um dia, dirigia meu carro quando parei no sinal. Olhei para o lado. Estava ela. No meio da calçada, na Nossa Senhora de Copacabana, enrolada num manto azul com uma touca branca na cabeça e um batom vermelho, que jurava ser o que eu tinha lhe dado. Os lábios cerrados não sorriam. E ela olhava para o horizonte como se esperasse a volta do seu pensamento.</div>
<div>E eu, que sou descrente de deus, vi Nossa Senhora. Majestosa Nossa Senhora num manto azul na Copacabana.</div>
<div>Saquei aquilo que tinha nas mãos e tirei-lhe uma foto. Digna de um altar.</div>
<div>Hoje descobri que ela foi assassinada por dois marginais. E por causa deles, descobri seu nome estampado nas manchetes.</div>
<div>Agora eu choro pelas poucas vezes que insisti na conversa, por não saber por Fernanda, quem era a Fernanda, e principalmente, por não ter voado com ela pela estratosfera de Copacabana.</div>