O sol que ilumina a Terra Plana
07/01/2021 21:13 - Atualizado em 08/01/2021 17:06
O sol já iluminava o solo brasileiro, nas primeiras horas do dia no ocidente, quando neste 7 de janeiro o Congresso americano pôde enfim declarar como eleitos, Joseph R. Biden Jr e Kamala D. Harris. Na Geórgia, concomitantemente, o reverendo Raphael Warnock e o documentarista Jon Ossoff foram ratificados como senadores, deixando o Partido Democrata com maioria na Câmara e no Senado durante o biênio 2021-22. Os Estados Unidos da América dão por encerrado o seu processo eleitoral, sem possiblidade de reverter, depois que o Congresso Nacional sanciona o resultado.
O sol que iluminou o solo americano algum tempo depois, pelo movimento de rotação da terra — sim, confirmando que a terra não é plana, e cabendo essa ressalva, infelizmente, em um século XXI que teima em não se reconhecer —, deveria ter Biden e Kamala Harris formalmente eleitos horas antes.
Deputados e senadores foram impedidos de concluir seus trabalhos institucionais por um motivo assustador: tiveram a vida posta em risco. Pela primeira vez a democracia mais longeva do mundo, há 232 anos elegendo pelo voto seus representantes, foi atacada por um presidente que incitou manifestantes para que invadissem o Parlamento de forma a impedir que a escolha popular fosse confirmada.
E ele foi invadido. Levando quatro pessoas a morte. Vândalos deixaram 14 policiais feridos e dois continuam hospitalizados. A democracia americana foi espancada por um caudilho topetudo tosco, que reduziu o orgulhoso país, que humilha seus moradores latinos, a uma República de Bananas, termo do escritor americano William Sydney Porter, conhecido como O. Henry, no conto ‘O Almirante’, de 1904. O termo é usado pejorativamente para definir países latino-americanos politicamente instáveis.
Foram ações sem precedentes na história. A única comparação possível envolve a Guerra Anglo-Americana, iniciada em 1812, quando a Inglaterra invadiu os EUA e levou, dois anos, depois à Batalha de Washington, onde tropas europeias ocuparam o Capitólio e a Casa Branca, sede do poder estadunidense.
Donald Trump, nos jardins da Casa Branca — no equivalente americano do “cercadinho do Alvorada”, onde o presidente brasileiro dispara suas imbecilidades — discursou para a turba. O ainda presidente americano continuou com sua retórica de fraude eleitoral, sem qualquer prova, e incitou o ataque democrático: “Nós vamos agora andar até o Capitólio, vamos celebrar nossos bravos senadores e deputados e deputadas, e talvez não celebremos alguns deles”. A claque que o ouvia seguiu ao Congresso e invadiu o Capitólio — prédio histórico e extremamente representativo na democracia americana—, pegando a segurança desprevenida e causando estrago. Um dos baderneiros desfilava com uma bandeira confederada — símbolo do movimento de 1860 que queriam dividir o EUA. Outro circulou com uma camiseta que estampava “Campo Auschwitz”, campo de concentração, maior símbolo do Holocausto, localizado no sul da Polônia, operado pela Alemanha Nazista. Muitos carregavam bandeiras com Trump escrito em letras garrafais.
Militantes convocados por Donald Trump invadiram o Congresso dos EUA hoje, interrompendo a sessão que reconheceria a vitória do presidente eleito Joe Biden (Por Aluysio Abreu Barbosa, no Blog Opiniões Foto: Reprodução)
Militantes convocados por Donald Trump invadiram o Congresso dos EUA hoje, interrompendo a sessão que reconheceria a vitória do presidente eleito Joe Biden (Por Aluysio Abreu Barbosa, no Blog Opiniões Foto: Reprodução)
 
Em essência, os imbecilizados manifestantes aderem a uma teoria denominada “QAnon”. Segundo essa teoria, Trump estaria travando uma guerra secreta contra “pedófilos adoradores de Satanás” que estariam representados no grupo que ganhou a eleição, na esquerda, na imprensa e em outros lugares que uma mente perturbada pode supor. Nada mais fantasioso e perigoso, como visto ontem.
A repercussão foi, obviamente, mundial. Líderes ao redor do mundo repudiaram o ataque frontal à democracia americana, a mais longeva do mundo — vale a repetição. Por aqui, em uma democracia bem mais recente e frágil, Bolsonaro se rendeu ao complexo de vira–latas e a adoração trumpista já conhecidas, e se limitou a dizer: “Vocês sabem que eu sou ligado ao Trump. Então você já sabe qual é a minha resposta aqui”. Mas, não deixando de aumentar a preocupação, experimentada por muitos brasileiros, logo depois do ataque ao Capitólio: “Se nós não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”.
A preocupação tem sentido. Trump e Bolsonaro fazem parte da mesma onda ultraconservadora e populista de direita que chegou ao poder, com representantes, além dos EUA e Brasil, na Polônia, Itália, Áustria, Turquia e outros. Assim que Trump começa a questionar o resultado eleitoral por lá, Bolsonaro lança dúvidas sobre o de cá. Pedindo o voto impresso, o presidente brasileiro ainda questionou o resultado das eleições onde ele mesmo saiu vitorioso, em 2018. Caso o resultado de 2022 seja negativo ao bolsonarismo, parece ser perfeitamente possível que ataques à nossa democracia aconteçam. Resta saber se nossa fragilidade institucional e democrática, pode suportar os ataques com efetividade. A democracia não é propriedade intrínseca de nenhum país. Quando suas condições sociais e políticas são diluídas, ela se apequenar ou se desconstituir em qualquer lugar.  
Por outro lado, talvez a violência americana possa criar cenários de fortalecimento das democracias, paradoxalmente. Explico: Um ataque grave como o de ontem, em uma democracia tão representativa, pode criar mecanismos de defesa, sendo a sociedade — e a própria democracia, por consequência — um organismo vivo. E, assim como uma vacina que cria armas para que o sistema imunológico humano rebata ameaças por já conhecê-las previamente, o 7 de janeiro de 2021 pode agir como um imunizante. Talvez. Salvo se o negacionismo premente prevaleça, e o como vemos no caso da pandemia do coronavírus, muitos se neguem à autopreservação. Mas, o sol que nasce no ocidente pode iluminar nossa terra plana.
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Campos, palco relevante e de alta qualidade, historicamente e contemporaneamente, de produção jornalística, cultural, artística e acadêmica, repercutiu o alarmante 7 de janeiro. Dialogo aqui com alguns dos atores campistas responsáveis, na atualidade, por essa relevância e qualidade:
Aluysio Abreu Barbosa, jornalista, editor do Blog Opiniões, hospedado no Folha1: (Atualizado em 08/01)
Tenho 48 anos. Lembro-me dos presidentes dos EUA desde Jimmy Carter. E dos seus seis sucessores na Casa Branca. Incluindo o atual, derrotado por Joe Biden nas urnas de novembro por 306 a 232 votos do colégio eleitoral, e mais de 7 milhões de votos populares. 
Vivi para ver o Congresso dos EUA ser ontem invadido por militantes de um caudilho de 5ª categoria. Para transformar a democracia mais longeva do mundo, que há 232 anos elege pelo voto seus representantes, em uma republiqueta de bananas. 
Espero viver para ver o responsável ser acusado, julgado e condenado com todo o rigor da lei. Tão logo seja cumprido seu mandado de despejo do poder, daqui a apenas 13 dias. E que sirva de exemplo abaixo do Equador, ao que espera o Brasil em 2022.
George Gomes, professor de sociologia da UFF-Campos:
Penso que uma das chaves para interpretar o que ocorreu nos EUA seja a estética política do que a extrema-direita, inclusive no Brasil, chama da "ucranização". No imaginário político de parte da extrema-direita contemporânea a Ucrânia forneceu um caminho, um rito de “purificação” das instituições alicerçado em um discurso ultranacionalista. Na prática instituiu a barbárie e a violência contra sua classe política tradicional. Tudo feito de maneira espetacularizada.
Na “ucranização”, ocupar prédios públicos é parte do repertório. Penso que o que ocorreu no Capitólio é fundamental para entender o que pode ocorrer por cá nos próximos tempos. Se tornou por enquanto um fato que confere concretude a determinadas ameaças.
E nem precisaremos chegar em 2022. As hostes já estão excitadas. As últimas falas de Bolsonaro, ameaçando a legitimidade do processo de concorrência eleitoral brasileiro acendem um alerta. Por enquanto amarelo. Mas, pode se tornar vermelho. A opinião pública, as instituições, a sociedade civil, a classe política.. Todos estão ainda em tempo de desarmar a tentativa de implementação de um projeto disruptivo. Pouco importa se tal projeto será bem ou mal sucedido. Algo assim não transcorre sem deixar prejuízos. Prejuízos estes, alguns deles, que necessitam do empenho de gerações para serem superados.
De todo modo, para a extrema-direita o que aconteceu no Capitólio foi um experimento. Vale pelo fato isolado e vale ainda mais pelas consequências. As repercussões jurídicas, simbólicas e políticas importam muito nas próximas semanas e meses.
Por fim, o White Trash norte-americano achou um Rubicão para atravessar. E não.. o Partido Republicano não tem como sair inteiro disso.
Rafaela Machado, historiadora, diretora do Arquivo Público de Campos:
Mais do que a pronta resposta dos líderes e organizações mundiais, a democracia norte-americana precisa punir os que abriram essa triste chaga ao invadirem o Capitólio, como também a quem incitou e levou os manifestantes a promoverem aquelas cenas de caos. O que digo é necessário não só para que os EUA se recuperem do erro cometido ao eleger Trump, como também para que as demais democracias mundiais, especialmente as que hoje são governadas por essa direita ultraconservadora, percebam os reais efeitos de qualquer ação que se queira parecida.
Estejamos certos de que a intenção do governo brasileiro é seguir na mesma onda de desordem, caos e de solapamento da democracia - enquanto esperam se fortalecer e minar qualquer mínima oposição. Bolsonaro não discursa há tempos contra o nosso sistema eleitoral inocentemente. Assim como não é desprendido de motivo as vozes que se levantam pelo fechamento do Supremo. A resposta das autoridades norte-americanas precisa ser proporcional ao grande mal praticado, pois só assim lá e aqui estaremos no caminho de garantir a sobrevivência, ainda que a duras penas, do sistema democrático.
Roberto Dutra, sociólogo e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF):
Assim como afirmei (confira aqui) em relação a Trump antes das eleições nos E.UA., não vejo como ter dúvidas de que Bolsonaro vai atacar o procedimento eleitoral em 2022. Toda sua prática e discurso apontam nesta direção. Bolsonaro não é, obviamente, o único fator de corrosão da democracia brasileira. A democracia moderna depende de condições sociais e políticas que não são propriedade intrínseca de nenhum país. Entre estas condições, eu destaco duas como sendo as mais importantes:
1) o sentimento de pertencer à comunidade política nacional sustentado na inclusão social e econômica e 2) a adesão aos procedimentos eleitorais e comunicativos da democracia. A erosão das condições e perspectivas de vida das classes populares e médias tem corroído o sentimento de pertença à comunidade política nacional e a atuação de líderes e governantes autoritários como Trump e Bolsonaro, que se aproveitam da frustração e do ressentimento que se originam da decadência social, é o que mais contribui para destruir a adesão aos procedimentos eleitorais e comunicativos da democracia. Quando essas condições sociais e políticas são diluídas, a democracia pode se apequenar ou se desconstituir em qualquer nação. Portanto, o desafio que se coloca para enfrentar o bolsonarismo em 2022 é duplo: reconstruir uma perspectiva de cidadania e inclusão socioeconômica para as maiorias e defender os procedimentos eleitorais e comunicativos da democracia. De fato, os sistemas sociais costumam desenvolver mecanismos ou subsistemas imunológicos contra ameaças. A invasão do Congresso dos E.U.A pode estimular este tipo de evolução social em outros países como o nosso. Mas apenas a defesa dos procedimentos eleitorais e comunicativos da democracia, embora seja necessária e urgente, não é suficiente para imunizar a sociedade e a política contra ameaças autoritárias. Precisamos levar em conta também as condições sociais, especialmente os problemas de inclusão socioeconômica que alimentam a cultura política do bolsonarismo.
 
 

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    Edmundo Siqueira

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