Um Economista Falando Sobre Justiça
20/11/2020 11:13 - Atualizado em 20/11/2020 11:20
ARTIGO EXCLUSIVO PARA O BNB- BLOG NINOBELLIENY
Por Cláudio Chequer*
 
Recentemente, o colunista do Jornal O Globo, Carlos Alberto Sardenberg, jornalista que admiro, escreveu um artigo duro contra a Justiça Brasileira, intitulado de “Justiça Absurda”.
 
O eminente jornalista abordou um caso recente julgado pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ e que envolveu uma moradora de um condomínio no Guarujá, litoral de São Paulo, e seus filhos, que foram proibidos de frequentar a piscina, o salão de festas e a brinquedoteca do condomínio onde moravam em razão da inadimplência com o condomínio, cuja dívida já havia alcançado a vultosa cifra de 290 mil reais.
No STJ, pela sua Quarta Turma, tendo como relator o Ministro Luís Felipe Salomão, a proibição aplicada pelas instâncias inferiores foi afastada.
 
Apesar de a moradora está inadimplente desde 1998 e possuir bens suficientes em valores que superam 2,5 milhões, o STJ, por unanimidade, decidiu que o condomínio não poderia impor aquelas restrições à moradora e seus filhos, sob o argumento de que tal restrição ao uso da piscina viola o direito à propriedade e à dignidade humana.
A crítica feita pelo jornalista à decisão proferida pelo STJ é severa. Na opinião do profissional, a decisão causa perplexidade: a moradora nunca paga condomínio e a justiça ainda foi capaz de lhe garantir o direito de nadar na piscina dos outros que pagam.
 
Segundo o autor da crítica, “a justiça brasileira manipula o conceito de direito de propriedade com frequência, passando por cima de leis e contratos, com o objetivo de ‘fazer justiça, objetivo vago, que varia conforme a orientação doutrinária e ideológica do juiz’”.
Sinceramente, creio que jornalistas que falam de Economia, em regra, não conseguem entender bem como deve funcionar o sistema jurídico brasileiro.
 
Hoje, a melhor intepretação do nosso arcabouço jurídico coloca a Constituição da República no centro de gravidade do ordenamento jurídico, impondo uma interpretação constitucionalizada aos demais ramos do Direito. Se durante o Positivismo Jurídico, tínhamos uma separação quase que absoluta entre o direito público e o direito privado, apresentando-se o Código Civil como a Constituição do Direito Privado e a Constituição da República como a Constituição do Direito Público, não havendo comunicação entre Constituição da República e Direito Privado, hoje, diante do Pós-Positivismo, a Constituição está no centro, na parte mais importante de um ordenamento jurídico único, sendo, assim, lido o Código Civil e todos os demais ramos do Direito sobre uma filtragem hermenêutica constitucional.
 
Antes, não havia comunicação entre Direito e Moral, mas, hoje, essa comunicação fluída e permanente entre Direito e Moral é feita pelos princípios constitucionais, que não são regras, mas princípios, aplicando-se a eles não a vertente interpretativa do tudo ou nada, mas sim a ideia de ponderação de valores, que deve levar em consideração todas as circunstâncias do caso concreto e restringir quando necessário, no mínimo possível, um direito fundamental.
 
Se o intérprete do Direito deve levar em consideração o conteúdo de contratos e leis, também deve interpretar esses contratos e leis sob a ótica dos princípios constitucionais, fazendo, obrigatoriamente, uma leitura constitucionalizada dos contratos e das leis. Os economistas, em geral, não entendem bem isso.
 
No caso concreto, o Código Civil já estabelece claramente uma sanção para o condômino inadimplente, norma ressaltada pela decisão do STJ. No caso, esse condômino poderá ficar automaticamente sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, ao de um por cento ao mês e multa de até dois por cento do débito (parágrafo primeiro do art. 1336 do CC); seu direito de participação e voto nas decisões referentes aos interesses condominiais poderá ser restringido (art. 1335, III, do CC); é possível incidir para ele a sanção do art. 1337, caput, do CC, sendo obrigado a pagar multa em até o quíntuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, conforme a gravidade da falta e a sua reiteração; poderá haver perda do imóvel, por ser exceção expressa à impenhorabilidade do bem de família (Lei n° 8.009/90, art. 3°, inciso IV).
Diante de todas essas sanções, o que se questiona é o seguinte: poderia, no âmbito da discricionariedade do condomínio em impor sanções, o condomínio prever a proibição do uso de determinadas áreas comuns de caráter supérfluo pelo condômino inadimplente. Apesar da controvérsia doutrinária e jurisprudencial existente em torno do tema, o STJ disse, acertadamente, que não.
 
Para o STJ, “a autonomia privada da assembleia geral, quando da tipificação de sanções condominiais, por se tratar de punição imputada por conduta contrária ao direito, na esteira da visão civil-constitucional do sistema, deve receber a incidência imediata dos princípios que protegem a pessoa humana nas relações entre particulares, a reconhecida eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que também devem refletir nas relações condominiais para assegurar a moradia, a propriedade, a função social, o lazer, o sossego, a harmonia entre os direitos”.
 
Acrescentou o julgado, mais uma vez de forma acertada e exemplar, que a Constituição Federal, como vértice axiológico de todo o ordenamento, irradiou a incidência dos direitos fundamentais também nas relações particulares, emprestando máximo efeitos aos valores constitucionais.
 
Ora, diante das possibilidades existentes e previstas pelo Código Civil para o caso, conforme narrado acima (da possibilidade de aplicação de multas até a perda da propriedade), e seguindo uma máxima interpretativa da hermenêutica jurídica de que as normas que restringem direitos devem ser interpretadas restritivamente, não comportando exegese ampliativa, aplicando-se, ainda, a linha de raciocínio de que o Código Civil deve ser interpretado a partir de sobre uma leitura constitucionalizada, leitura essa que exige e impõe a dignidade da pessoa humana como fim, não parece razoável impor ao condômino a restrição vislumbrada pelo jornalista como adequada, independentemente de sua destinação (se de uso essencial, recreativo, social, lazer) com o único e ilegítimo propósito de expor ostensivamente a condição de inadimplência perante o meio social em que residem, com ofensa grave dos ditames do princípio da dignidade humana.
 
Por fim, o caso concreto é tão singelo que não houve sequer necessidade de levar em consideração na ponderação feita que o caso concreto envolvia uma viúva com cinco filhos menores que, por motivo de força maior, o falecimento de seu marido, enfrentou sérias dificuldades de gerir os negócios da família, já tendo sido penhorados bens mais do que suficientes para o pagamento da dívida.
 
Diante de todo o contexto fático envolvendo a situação analisada, parece-nos mesmo que jornalistas especializados em Economia não devem desejar interpretar o arcabouço jurídico, sendo necessário ressaltar que não são os juízes, muitas vezes, que impõem em suas decisões uma orientação doutrinária e ideológica, mas sim foi a Constituição Cidadã que fez a opção, expressa, pela dignidade da pessoa humana como valor máximo da ordem jurídica.
*Chequer é Procurador da República. Doutor em Direito Público pela UERJ, Coordenador Acadêmico e Professor do curso de Direito da  UniRedentor/Afya

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