O bailado das balas na crônica de Carmen Lucia Pessanha
19/09/2020 07:21 - Atualizado em 19/09/2020 07:45
Professora aposentada da Universidade Federal Fluminense (UFF), Carmen Lucia Pessanha integra uma legião de campistas que fixou-se em Niterói.
Na terra natal, ela residiu com a família em um belo casarão na Av. 15 de Novembro, perto da fábrica de goiabada Young.
Somos contemporâneos e fomos vizinhos. Carmen morando na chamada Beira-Rio, eu na Rua Baronesa da Lagoa Dourada. Daí que o tema desta bela crônica, publicada por ela no blog Dijaojinha, foi por mim testemunhado, já que comprávamos na mesma venda, muito sortida.
Naqueles tempos, antes da enchente de 1966, a tal venda — nome dado a um pequeno comércio de secos e molhados —, que é cenário no escrito de Carmen, pertencia a Moacir Paes de Lima. Ficava na esquina Baronesa/Beira Rio. E tinha uma clientela grande.
Eu, claro, batia ponto ali para comprar algumas coisas, inclusive balas. E via de perto o embrulhar dos balconistas, tal e qual Carmen Lucia Pessanha descreve aqui com minúcias e muita sensibilidade:
“Na esquina lá de casa com a Rua da Baronesa tinha uma venda onde eram vendidas balas de goiaba, umas balas duras como nenhuma outra e tão deliciosas a ponto de provocar esta viva rememoração. Sua cor era de goiaba mesmo, eram meio brilhosas, quadradinhas, esquisitas, diriam os argentinos...
Mas neste texto que brota sei lá de que rincão de minha história, a bala de goiaba entra mesmo só para anunciar o que virá, tal qual uma hipotética participação dos nossos Paralamas abrindo um show dos Rolling Stones, antes dos ingleses cantarem, para delírio geral, a sua histórica Satisfaction.
Pois os Rolling Stones a que quero me referir aqui são o bailado que as habilidosas mãos do balconista da venda da esquina faziam para embrulhar as balas compradas pelas crianças da vizinhança.
O papel era acinzentado, rústico, meio manchado, até lembrando os reciclados de hoje em dia, e era puxado de um tipo de bobina serrilhada, grandona, postada atrás do balcão, de onde o artista puxava e cortava o pedaço que queria, maior ou menor, de acordo com a quantidade de balas a embrulhar.
Postas as balas no centro do papel, dava-se início ao bailado. Com ambas as mãos, como se fosse uma daquelas donas de casa argentinas processando suas rechonchudas empanadas, ele vinha dobrando as abas do papel, uma após outra, como uma empanada mesmo, até chegar ao último ato: era quando o moço, artista anônimo de minha esquina, de quem não me lembro a face, apenas o gesto, lançava o pequeno embrulho em volta dele mesmo, numa volta inteira pelo ar, firmando-o pelas últimas dobras já feitas, uma em cada mão.
O resultado era um perfeito pacotinho de balas, com os dois “chifrinhos” enroscados, milagrosamente surgidos como seu derradeiro fecho. Era coisa de Terceiro Ato mesmo.
Só que, para mim, ali o cisne sempre revivia, como se contássemos, como fundo musical, com o som da mais cristalina execução do eterno Tchaikovsky. Pura expressão de uma Arte singela, hoje viva apenas em minha memória.
A paixão que passei a ter pelo que são capazes de fazer as mãos humanas, com certeza, surge em grande medida daquele gesto – para o moço, tão corriqueiro –, e faz dele uma de suas mais nobres inspirações”.

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    Saulo Pessanha

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