"As mulheres são as heroínas desconhecidas desta crise" afirma Diretora da ONU Mulheres
HelôLandim
A crise de saúde e o subsequente confinamento generalizado em todo o mundo levaram a um aumento da violência contra as mulheres. Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora executiva da ONU Mulheres, alerta que os direitos das mulheres podem ser reduzidos como resultado da pandemia. Confira a entrevista concedida  em à Laetitia Kaci da  UNESCO.
A senhora alertou sobre um aumento da desigualdade de gênero devido à crise de saúde. Por que esta pandemia é particularmente prejudicial para as mulheres?

Nenhuma crise é neutra em termos de gênero, e esta não é diferente. Muitas vezes, a crise acentua as desigualdades que já existem entre homens e mulheres.

As mulheres têm vivenciado grandes dificuldades devido a esta pandemia. Muitas delas trabalham na linha de frente e têm sido diretamente expostas ao vírus. Elas também foram duramente atingidas por suas consequências econômicas e sociais. A interrupção das atividades devido à crise acarretou maiores dificuldades econômicas para as mulheres, que geralmente trabalham em empregos mais precários e com salários mais baixos do que os homens. Muitas delas perderam seus meios de subsistência.

Além disso, muitas mulheres dependem de serviços sociais, cujo acesso foi dificultado durante este período. Aquelas que não tiveram acesso imediato aos auxílios sociais foram ainda mais atingidas.

A pandemia trouxe à tona profissões fundamentais – como enfermeiras, professoras e caixas –, nas quais as mulheres estão super-representadas. Esta crise pode mudar a maneira como nós percebemos essas trabalhadoras?

As mulheres são as verdadeiras heroínas desta crise, mesmo que não sejam reconhecidas como tal. No entanto, curiosamente, parece haver uma falta de consciência de que as mulheres estão, na verdade, assumindo a resposta a esta crise. Mesmo que estejam salvando vidas, elas continuam a ser heroínas desconhecidas.

Eu espero que essa percepção mude. É por isso que precisamos continuar falando sobre o papel que elas desempenham – dar destaque a seus esforços, a fim de que não passem despercebidos.

O que as mulheres podem oferecer para a gestão de crises?

As mulheres são vistas por nossas sociedades como as principais cuidadoras, sejam remuneradas ou não. Mas elas também sabem como ir além de pensar nisso puramente como uma crise relacionada à saúde a ser administrada. Uma vez que as mulheres sabem como ser multitarefas, talvez elas sejam mais aptas a entender que, em uma situação como esta, nós estamos lidando com vários fatores – econômicos, sociais, de saúde e de segurança alimentar, entre outros. Elas têm uma melhor compreensão da interseccionalidade, porque a vivenciam diariamente. Portanto, já estão programadas para lidar com crises como esta.

Em uma declaração de abril de 2020, a senhora se referiu à pandemia oculta do aumento da violência contra as mulheres. Que impacto teve o confinamento na situação das mulheres?

Naquela declaração, eu disse que as linhas telefônicas de apoio e os abrigos para vítimas de violência doméstica em todo o mundo relataram um aumento dos pedidos de ajuda. O confinamento agravou as tensões e aumentou o isolamento das mulheres com parceiros abusivos, ao mesmo tempo em que as afastou dos serviços mais capazes de ajudá-las. Esse contexto em particular tornou a denúncia de abusos ainda mais complicada, devido às limitações no acesso de mulheres e meninas a telefones e linhas de ajuda, assim como prejudicou serviços públicos, como a polícia e os serviços judiciários e sociais.

Em alguns países, onde os serviços de proteção às vítimas de violência doméstica não são considerados essenciais, as mulheres foram privadas de toda e qualquer ajuda, enquanto permanecem trancadas em suas casas com seus agressores. Isso tornou ainda mais difícil para as mulheres lidar com a violência.

Existe o risco de que os direitos das mulheres estejam sendo reduzidos?

Os direitos das mulheres sem dúvida deram um passo para trás – e, em alguns casos, estão seriamente comprometidos. Não devemos permitir que isso aconteça.

Este ano, 2020, é um grande ano para as mulheres. Marca o 20° aniversário da Resolução 1325 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (sobre Mulheres, Paz e Segurança). Nós devemos seguir em frente com todos os planos que temos e nos preparar para, quando for possível, sermos mais ativas. No entanto, devemos estar a par dessa agenda e não podemos encerrar esse assunto. Para as mulheres, obter seus direitos é tão importante quanto sobreviver à COVID-19. Essas duas batalhas [pelos direitos das mulheres e contra a doença] devem ser travadas juntas. E nós temos que vencer ambas.

Como podemos garantir que os direitos das mulheres não se tornem vítimas desta crise?

Na economia, por exemplo, nós devemos garantir que os pacotes de auxílio [fornecidos por governos de diferentes países] sejam claramente direcionados às mulheres, e que funcionem para as mulheres que estão no setor informal. Esses são alguns dos direitos pelos quais teremos que continuar lutando. A luta contra a violência de gênero não terminará após a crise. Devemos permanecer vigilantes e tentar achatar a curva da violência contra as mulheres.

Devemos ainda incentivar as mulheres a assumir posições de liderança na resposta à pandemia, especialmente nos países onde elas estão sub-representadas no setor da saúde e em outros. Na luta contra o vírus e no apelo por uma representação mais justa em determinados setores. É nisso que nossos esforços devem se concentrar.

Também é necessário incentivar o desenvolvimento da educação a distância, garantindo, ao mesmo tempo, que não seja acompanhada pela ampliação do abismo digital. As comunidades nem sempre têm acesso às tecnologias, e mesmo onde há tecnologia, ainda existe uma divisão digital de gênero. Temos que continuar a tornar essa luta uma realidade. Temos que garantir que as meninas de comunidades pobres não fiquem de fora da educação, à medida que a educação migra para plataformas digitais.

Eu espero que a UNESCO, a ONU Mulheres, a Comissão de Banda Larga, a União Internacional das Telecomunicações  e os ministérios da Educação trabalhem juntos para garantir que a infraestrutura de banda larga seja estabelecida em escolas e comunidades rurais em assentamentos informais, para que todos, em todos os lugares, tenham acesso à educação.

Leia mais:
Helen Pankhurst: “Feminism is in my blood”, The UNESCO Courier, Jan.-Mar. 2020





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