Volta apressada do futebol reflete nossas mazelas enquanto país e coletividade
20/06/2020 16:32 - Atualizado em 20/06/2020 16:33
* Por Carlos Eduardo Mansur
Volta apressada do futebol reflete nossas mazelas enquanto país e coletividade
Bangu x Flamengo foi uma das jornadas mais deprimentes da história do Maracanã

Dois dias depois de completar 70 anos e ser celebrado mundo afora como o templo do futebol que é, o Maracanã recebeu de presente de um grupo de clubes, liderado pelo Flamengo, uma das jornadas mais deprimentes de sua história. Eram 22 jogadores em campo e 26 seres humanos na UTI do hospital de campanha montado no interior do complexo do estádio. Um símbolo da cultura carioca feito de palco para instituições mais do que centenárias da cidade darem as costas para as centenas de mortes diárias no Rio.

Nunca a definição do futebol como reflexo da sociedade foi tão adequada. Toda a gênese da volta apressada do futebol em meio à pandemia reflete cada uma de nossas mazelas, cada uma de nossas facetas menos elogiáveis enquanto país e coletividade.

A começar pelo individualismo, traço marcante de nosso cotidiano. Bastou encontrar uma brecha nos decretos de estado e município para que o Flamengo voltasse a treinar antes dos rivais. Chegou a fazê-lo às escondidas.

Daí veio a impotência, a inação do poder público, outro aspecto íntimo de nossa vida cotidiana. Enquanto o Flamengo treinava, a Prefeitura do Rio apenas desaconselhava, simulava rigor. Todos sabiam o que se passava no Ninho do Urubu. Mas jamais se redigiu um decreto que permitisse ação efetiva.

O passo seguinte foi o lobby, o gradual abandono da ciência em nome de um jogo de influências políticas. Flamengo e Vasco começaram a mover suas peças no tabuleiro por Brasília, junto a um presidente negacionista e defensor do fim das medidas de isolamento social. Uma reunião com governadores e outra com o prefeito do Rio foram afrouxando as resistências locais.

Ontem, horas antes do Flamengo x Bangu, o capítulo final foi a Medida Provisória que dá aos clubes mandantes o direito de vender seus jogos para a TV. O Flamengo, veículo perfeito para o projeto político de Bolsonaro pelo fim do isolamento, usando o futebol como símbolo, obtinha do governo uma medida chave em seu projeto comercial.

Não param por aí os paralelos entre o processo que conduziu à volta do futebol e nossas mazelas cotidianas. Num país desgovernado, sem rumo na briga contra o vírus, as ruas assistem a um "cada um por si". Vários pontos do Brasil, e o Rio em especial, decidiram viver como se o vírus não mais existisse. E o futebol encontrou o contexto perfeito para pegar carona.

Sob o ponto de vista científico, nada justifica o retorno do futebol, tampouco o de shoppings e outras áreas públicas tomadas de gente nos últimos dias. A açodada e tresloucada corrida rumo a uma normalidade artificial criou o argumento que faltava para que a bola rolasse outra vez. Fosse com jogadores maltratados fisicamente, com elencos amadores ou arremedos de times despreparados. Se os shoppings abriram, por que não o futebol?É até difícil contrapor tal argumento num país sem uma linha de ação técnica, clara.

Ocorre que clubes têm um papel social a que deveriam dar mais atenção. O desgoverno do país não nos impede de esperar de instituições enraizadas na comunidade comportamentos mais empáticos. Este Flamengo x Bangu envia uma mensagem de insensibilidade e desrespeito. No dia em que se jogou bola a metros de uma UTI com 26 seres humanos, as prioridades ficam claras. O futebol nunca refletiu tanto a nossa sociedade.

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    Christiano Abreu Barbosa

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