Nenhum passo atrás! Manicômios nunca mais
18/05/2020 16:58 - Atualizado em 19/05/2020 12:09
 Elaine da Silva Siqueira
Mestranda em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro- UENF. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense - UFF.
Hoje, 18 de maio, é o dia dedicado às comemorações da Luta Antimanicomial no Brasil. Esse movimento, que em 2020 comemora 33 anos, nasceu em Bauru no II Encontro Nacional de Trabalhadores da Saúde Mental em 1987, no contexto de redemocratização do país e da organização de movimentos para construção do Sistema Único de Saúde, o SUS, como a 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), e a I Conferência Nacional de Saúde Mental. O encontro composto por trabalhadores da saúde mental convocou a sociedade civil (junto a familiares de internos, e ex internos) para a discussão sobre as formas de cuidado para aquelas pessoas que apresentam sofrimento mental grave. Um movimento de resistência por parte de todos aqueles que não compactuam com as políticas de exclusão, tortura, encarceramento e morte das pessoas em vulnerabilidade (AMARANTE, 1995). As trabalhadoras e trabalhadores da saúde mental se recusaram a ocupar o lugar de agentes da exclusão e da violência institucionalizadas. O encontro teve como fruto o manifesto conhecido como a “Carta de Bauru”.
Importante marco para a Reforma Psiquiátrica brasileira, a “Carta de Bauru” evoca o lema “Por uma sociedade sem manicômios” e coloca questões referentes a uma quebra de paradigma no entendimento da loucura pelo bojo do social: esta é então entendida como uma possibilidade de existência, e o cuidado ofertado para o sujeito dito louco precisa incluir a garantia de direitos e dignidade. Desta forma, são denunciados os vários abusos e violações de direitos humanos sofridos pelos então pacientes dos manicômios.
Os manicômios ou hospitais psiquiátricos eram os espaços destinados às pessoas socialmente entendidas enquanto loucas, que possuíam sofrimento mental grave, mas também eram o destino para todas as pessoas mal vistas pela sociedade, como os pobres, pessoas em situação de rua, usuários de drogas, mulheres divorciadas, homossexuais, transexuais, doentes crônicos, todos aqueles que precisam ser excluídos, cuja existência anunciava os restos (porque não dizer frutos?) de uma sociedade capitalista e desigual. Ali não era oferecido nenhum tipo de cuidado, embora esse fosse o discurso daqueles que eram a favor desse modelo institucional. Era preciso limpar a sociedade dos que incomodavam. Escrevo estas palavras no pretérito, mas com tristeza posso afirmar que se trata de um passado muito recente e até mesmo atual. Em 2020 muitos manicômios ainda existem no Brasil, reproduzindo a lógica da exclusão e da violência. Nessas instituições o que é promovido é a morte, seja ela subjetiva ou até mesmo física. Sem nome, endereço, idade, história e escolha, pessoas eram e ainda são internadas nesse tipo de instituição.
Como resultado do movimento da Luta Antimanicomial, são articuladas ações de enfrentamento à lógica excludente. Entende-se então, inspirando-se na reforma psiquiátrica Italiana, que o cuidado em saúde mental não deve se dar de forma asilar e tutelar e promovendo a violação de direitos, mas sim no sentido de promover autonomia, partindo do entendimento de que o sujeito dito louco também é cidadão, é um sujeito de direitos, e faz parte do cuidado em saúde mental garantir esses direitos.
Depois de muita organização popular, envolvendo familiares, usuários dos serviços de saúde mental que já começavam a ser construídos e profissionais da saúde mental, é estabelecida então a Lei 10.2016 de 2001, conhecida como a lei da Reforma Psiquiátrica. Ela estabelece, em termos gerais, o fechamento progressivo dos hospitais psiquiátricos e a instalação de serviços substitutivos. O cuidado em saúde mental deve ser psicossocial, objetivando garantir direitos básicos ao sujeito dito louco, a cidadania da loucura. Os usuários dos serviços de saúde mental são protagonistas nas discussões sobre a implantação da lei, junto com seus familiares e os trabalhadores: “O compromisso estabelecido pela luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a classe trabalhadora organizada” (MANIFESTO DE BAURU, 1987).
No entanto, somente em 2011 é instituída a Rede de Atenção Psicossocial - RAPS pela Portaria no 3.088, de 23 de dezembro de 2011, que delinea a função de cada serviço de saúde mental, e é instaurado o funcionamento em rede. O centro do debate é o protagonismo de usuários, familiares e da sociedade como um todo no debate da saúde mental, visando a autonomia, a humanização do cuidado, o bem estar das pessoas com sofrimento psíquico, e a garantia de direitos. É importante citar a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços substitutivos aos manicômios, cuja premissa é o cuidado psicossocial em liberdade, abrangendo toda a complexidade que esse modelo de cuidado exige, e desenvolvendo atividades no território, além de oficinas artísticas, culturais, de trabalho e renda, entre tantas outras atividades (AMARANTE, 1995).
No dia 14 de dezembro de 2017, a Comissão Intergestora Tripartite (CIT) do Sistema Único de Saúde (SUS) aprovou, sem nenhum tipo de discussão, a resolução n° 32, que indica a adição dos leitos manicomiais e das comunidades terapêuticas como parte da Rede de Atenção Psicossocial. Isto é um grande retrocesso nas políticas públicas de saúde mental, pois tratam-se de instituições que não compactuam com a premissa do cuidado em liberdade e da promoção de cidadania. Como os trabalhadores no encontro de Bauru, é preciso cada vez mais nos organizarmos para resistir a esses ataques. O cuidado em liberdade precisa ser direito de todo cidadão.
Com o fechamento dos manicômios, os loucos outrora excluídos do convívio social agora circulam pela cidade: vão ao carnaval, às festas juninas, às praças, estão na cidade, e nos diversos espaços que ela oferece. Essa reinserção na vida social é chamada de desinstitucionalização, processo delicado que precisa contar com o compromisso e dedicação de todos os setores da sociedade, e que mobiliza um olhar sóciocultural que respeita e acolhe as diferenças; o lugar do “louco” é na vida, a liberdade é terapêutica.
Campos dos Goytacazes tem avançado na implantação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e na luta antimanicomial. A cidade conta com uma grande oferta de serviços que compõem a RAPS, são eles:
. O CAPS infantil III: que funciona prestando atendimento infanto juvenil a sujeitos com sofrimento mental grave ou relacionado ao uso de álcool e outras drogas, e que por ser de nível 3 funciona de portas abertas, 24h, além de contar com a possibilidade de acolhimento em leitos.
. O CAPS AD III: oferta atendimento adulto a sujeitos com questões de sofrimento relacionado ao uso de álcool e outras drogas, que também funciona de portas abertas, 24h, com possibilidade de acolhimento em leitos.
. O CAPS II: atende a adultos com sofrimento mental grave, que por ser de nível 2, funciona num período específico, de 8 - 18h, de segunda a sexta.
. O CAPS III: também atende a adultos grave, conta com a possibilidade de acolhimento em leitos, funcionando 24h, de portas abertas.
. As Residências Terapêuticas - RT: o município conta com 3 residências terapêuticas, espaço destinado aos ex internos de hospitais psiquiátricos, agora usuários da rede de saúde mental, que perderam vínculo familiar e ainda não possuem alto grau de autonomia devido aos longos anos de internação, é um espaço de moradia.
. A Unidade de Acolhimento Infanto Juvenil - UAI: que é a unidade de acolhimento infanto juvenil para os usuários da rede que possuem até de 18 anos de idade, destinado aqueles em vulnerabilidade social e familiar, também funcionando 24h.
. Ambulatório Ampliado de Saúde Mental: Campos possui 2 ambulatórios ampliados de saúde mental, em que são ofertados cuidados ambulatoriais a toda a população que possui sofrimento mental. Conta com o atendimento em psiquiatria e psicologia.
. Posto de Urgência Psiquiátrico: além de todos esses serviços previstos pela RAPS, o município também conta com um Posto de Urgência para questões de urgência de sofrimento mental, atualmente funcionando como porta de entrada para os demais serviços.
. É importante ressaltar que as Unidades Básicas de Saúde - UBS e Unidades Básicas de Saúde da Família - UBSF fazem rede com os diversos serviços da RAPS, importante articulação para a garantia do cuidado no território.
Apesar de 33 anos de Luta Antimanicomial, o discurso manicomial ainda é muito forte e presente em diversos lugares, até mesmo nos serviços de saúde. Para além de mudar uma lei, é preciso modificar também todo um paradigma anteriormente cristalizado na cultura. É preciso questionar a todo o tempo quais os efeitos de nossas práticas, se elas são promotoras de autonomia, negligência, ou até mesmo tutela. É preciso derrubar nossos manicômios mentais.
Feliz dia da luta antimanicomial!
Saúde não se vende, loucura não se prende!
Por uma sociedade sem manicômios!
Referências Bibliográficas:
AMARANTE, P. D. C., (coordenador), - Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica na Brasil. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1995.
BRASIL. Portaria n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). 
BRASIL. Ministério da Saúde. Comissão Intergestores Tripartite. Resolução n. 32, de 14 de dezembro de 2017. Brasília, 2017.  
BRASIL. Ministério da Saúde. Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. 
 
 
 
 

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