Efeitos sociais da pandemia
14/05/2020 20:45 - Atualizado em 15/05/2020 12:07
Este é o segundo texto do professor André Kieserling traduzido e publicado no blog a partir de sua coluna no Frankfurter Allgemeine Zeitung.
Nesta coluna, Kieserling comenta achados empíricos das mais variadas pesquisas sociais sobre os mais distintos temas, usando um olhar sociológico para comunicar, de modo resumido e acessível, um conhecimento científico que refuta a pretensão de generalidade de intuições do senso comum. Não se trata de negar totalmente a validade destas intituições, mas sim de relativizar esta validade. A sociologia é arte do "segundo olhar", dizia Luhmann, o grande mestre de Kieserling e fundador da Escola Sociológica de Bielefeld.
Meu objetivo, porém, vai além da tradução e reprodução desses textos. Inclui comentários sobre o significado dos principais achados para debates sobre a política e a sociedade no Brasil.
Neste texto, na agenda da Covid-19, o assunto são os efeitos sócio-culturais das crises e pandemias, especialmente a simplificação cognitiva e moral do mundo que decorre do colapso dos saberes sociais disponíveis. Um destes efeitos seria a desconfiança com pessoas ou grupos considerados perigosos, ou seja, responsáveis por disseminar doenças.
Será que os brasileiros podem ser alvo de processsos de estigmatização como estes? Será que o conhecimento global sobre nosso fracasso em lidar com a pandemia, inclusive sobre o comportamento das pessoas, pode se tornar um saber seguro, em meio a tanta insegurança cognitiva, para orientar práticas de discriminação que toda pandemia já tende a induzir?
 
Uma epidemia de medo
                                                                                                               André Kieserling
A praça do mercado de Nápoles durante a peste, de Domenico Gargiulo,1657
A praça do mercado de Nápoles durante a peste, de Domenico Gargiulo,1657
 
 
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         Em tempos de crise, perdemos nossa orientação e aumentamos nossa desconfiança em relação aos outros. Qual a razão disso?
Exatamente trinta anos atrás, o sociólogo da medicina britânico Philip Strong publicou um ensaio sobre a sociologia das epidemias, que logo se tornou uma referência clássica em pesquisa sobre desastres nas ciências sociais. Naquela época, a AIDS era a ameaça do momento, e as entrevistas feitas pelo autor também se referiram às incertezas que ela desencadeava. No entanto, Strong também levou em conta epidemias da antiguidade e da idade média, pois seu objetivo era um modelo geral. É, portanto, um pensamento deliberadamente a-histórico, que visa sobretudo identificar os traços constantes na reação a um desastre de grandes proporções, novo e em grande parte incompreensível.
O autor não se preocupa com a trajetória objetiva de uma doença infecciosa, sobre a qual se deve temer que ponha em perigo a saúde ou a sobrevivência de muitas pessoas – e isto sob pressão temporal intensa que limita fortemente o repertório de medidas e possibilidades de reação adequadas. Ao invés disso, ele está interessado na crise de orientação que tais perspectivas desencadeiam na sociedade. Esta segunda crise não é simplesmente um reflexo mais ou menos fiel da primeira. Embora se espalhe como um contágio, segue sua própria lógica e pode, portanto, causar seus próprios "danos de inquietação" (Niklas Luhmann), não só temporariamente sobre o julgamento das pessoas envolvidas, mas também permanentemente sobre as instituições da sociedade.
Subjetividade necessária
Para Philip Strong a principal razão para esta autonomia do desenvolvimento especificamente social da crise, é que em face de riscos maiores, agudos e novos não é possível se orientar por saberes testados e seguros. Quando a Peste Negra se aproximou pela segunda vez, as pessoas já tinham experiência e rotina para lidar com essa pandemia, mas na primeira aparição as pessoas estavam despreparadas. Segundo Strong, a ação em uma crise desse tipo não é simplesmente orientada pela diferença entre o que é certo e errado, pois, além de erros drásticos, é preciso evitar que a ação aconteça cedo ou tarde demais. Os historiadores podem ver isso retrospectivamente, mas seu conhecimento não está disponível para os contemporâneos do desastre desconhecido. Estes contemporâneos não têm outra opção além de exagerar as informações insuficientes e agir com base em seguranças autofabricadas. Suas reações são, portanto, inevitavelmente subjetivas, e é justamente essa subjetividade necessária que torna compreensíveis muitas características objetivas da dinâmica social da crise.
Strong explica isso usando o exemplo da desconfiança em relação a pessoas consideradas perigosas. Isto pode ser um erro de julgamento subjetivo. Mas precisamente como tal, mesmo em situações normais, este erro tende ao auto-reforço e à hostilidade aberta, e em crises graves de orientação essa hostilidade pode ser dirigida contra aqueles a quem se atribui a doença ou que poderiam disseminá-la. Como é sabido, uma das primeiras reações à AIDS foi a tentativa de vê-la como uma doença apenas de gays, quando não um castigo por sua orientação sexual. Strong fala de uma epidemia de medo para descrever tais ondas de desconfiança.
Alarmistas e negacionistas
A necessária subjetividade da reação explica muito bem por que não há avaliações unânimes, mas sim concorrentes sobre o perigo, confrontando, por exemplo, alarmistas e negacionistas com enorme vínculo emocional com suas próprias visões. Mesmo as controvérsias científicas podem então ser combatidas como guerras de fé, e também podem ocorrer conversões que levam os seguidores de um campo para o outro, onde continuam sua pregação com o zelo dos novos convertidos. Philip Strong fala de uma epidemia de explicações e uma epidemia de recomendações de ação, para descrever essa ação descoordenada com convicções fortes.
As dúvidas sobre este procedimento a-histórico são evidentes: As civilizações pré-históricas avançadas não reagiram de forma bem diferente às epidemias em comparação com as sociedades modernas? E não faz diferença considerável se quem atua como intérprete competente são padres ou cientistas? Strong talvez responda que a simplificação do modelo atende a um traço do próprio objeto: as crises têm como característica geral a simplificação das perspectivas. A regressão intelectual e emocional é um de seus efeitos colaterais, e uma forte tendência à desdiferenciação social é uma de suas características inconfundíveis. Isso parece plausível: pessoas alimentadas conseguem se diferenciar umas das outras, mas a fome quase insuportável faz com que todos se pareçam iguais. Da mesma forma, pode-se olhar para esta ou aquela direção em meio a um ambiente de vida estável e conhecido, mas diante de um perigo desconhecido, reações menos diferenciadas e sobretudo menos independentes são flagrantes.
Bibliografia
Philip Strong, „Epidemic psychology: a model“, Sociology of Health & Illness, Vol. 12, No. 3 (1990), p. 249-259.
 
 
 

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    Sobre o autor

    Roberto Dutra

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