Troca de cartas ao longo de 500 anos
20/05/2020 13:56 - Atualizado em 09/08/2020 16:00
Um janeiro qualquer de 1817.
Malunga,
Hoje passei o dia a pensar no provérbio que me ensinaste durante a travessia. “Dyodyo kuzeye ko i mputu – O que tu não sabes é Europa”. Creio que estavas certa. Os mortos, todos eles, vêm para o Novo Mundo. Caminhando pela rua do Valongo, recordei do dia em que desembarcamos neste Brasil, o lugar de onde não se retorna. Tumbeiros ainda cruzam o oceano transportando mais e mais almas pelas águas agitadas. Nós não sabíamos o que nos esperava. Nós não esperávamos por nada. Mas você já dizia que o Novo Mundo era um preâmbulo de mortos.
Um abril qualquer de 2017.
Irmã,
Outro dia li na internet que a Terra Papagalli fora batizada de Brasil em homenagem a sua mais valiosa commodity da época. A árvore de pigmento vermelho que coloriu os tecidos europeus de sangue indígena e inaugurou uma tendência fashionista da elite da época.
O pigmento extraído do Pau Brasil, que no passado tingiu roupas abastadas, hoje é associado aos comunistas e matiza bandeiras dos desprovidos de terra e de teto. Isto porque graças a abundância arbórea, a tintura rara tornou-se comum na Europa, fazendo que o que a aristocracia buscasse outro pigmento mais incomum na natureza que representasse seu distanciamento do povo: o azul.Talvez por isso, o sangue da realeza seja azul e não vermelho como o plasma indígena exportado nas caravelas ou como a seiva que corria em veias negras vindas da África.
Os tumbeiros brasileiros transportaram sangue por mais de 400 anos, tingindo de escarlate a rota naval. A água azul que vemos é uma ilusão de ótica. A mesma ilusão criada pela aristocracia que nos faz crer que basta perseverar para conquistar nossos sonhos. Que sonhos? Nossos sonhos foram diluídos nessa grande kalunga. Ou seria kalunga pequena?O mar, este elo de ligação entre o Velho Mundo e um Grande Cemitério, continua até hoje a transportar sangue sob forma de commodities. Que nome teria esta terra, em que se plantando tudo dá, se a cada nova matéria prima, ela assim fosse rebatizada. O Brasil teria sido Cana, sido Ouro, sido Café. O país contemporâneo chamaria Soja. Nome curto e singelo, cujos descendentes se denominam “Sojeiros”. Um povo de sangue ralo e amarelo, cuja aparência ictérica se disfarça quando observamos de perto suas mãos, pés e os cascos de seus navios cargueiros cobertos pela mesma seiva indígena e negra do país colonial.
Um agosto qualquer de 1817.
 
 
Malunga,
Escrevo-te do passado para que no inexistente futuro possas recordar de nossas palavras. Duzentos anos de português apagam qualquer resquício de nossa sabedoria. É esta a sina de nossos filhos da diáspora. A morte pelo esquecimento. Esquecemos de nossa língua, de nossos costumes, esquecemos até de quem somos e quem são os nossos. E vivemos como os outros (brancos) determinam. Cerceando nossos corpos e moldando nossos comportamentos para caber na mediocridade deles.
Tenho refletido sobre o que li em vossa última carta e me é quase impossível imaginar que praias como Santa Luzia, Gamboa e Lazarento já não existam. Onde quebram as ondas destes mares sepultados?Mputu, esta terra dos brancos e das águas agitadas por onde não se pode navegar de volta, tem agora passagens subterrâneas onde correm os rios ladeados aos inúmeros corpos dos nossos. Corpos pretos enterrados sem direito a identidade. Rios turvos que um dia, cristalinos, demarcavam a geografia da cidade margeando as construções que crescem em torno das águas.Uma tragédia. O Rio de Janeiro é um imenso cemitério de águas e corpos negros. Uma grande kalunga pequena
2 de Setembro de 2018.
Irmã,
Neste exato momento em que te escrevo, labaredas de fogo devoram, sem piedade, grande parte do pouco que restou de nossa memória na diáspora. O fogo consome o telhado daquilo que um dia foi residência real, mas engana-se aquele que pensa que este incêndio é um simulacro tupiniquim da tomada da Bastilha. Não há nada de revolucionário em queimar museus. Explico-te pois deves me ler com duzentos anos de atraso e tampouco entender esta missiva. O palácio real, residência de Dom João VI, tornou-se um museu onde residiam artefatos egípcios, ameríndios e de outras civilizações africanas. O fogo consumiu o trono de Adandozan, do reino de Daomé e 5 milhões de exemplares de insetos. Borboletas mortas voavam numa sala do museu pouco antes de serem consumidas pelo fogo. Em alguns dias, o mundo saberá do pouco que sobreviveu às chamas. Pouparam Luzia e o Bendegó. Luzia mulher negra, o fóssil mais antigo da América, que tem a aparência de nossos ancestrais. Resistir à travessias, pelas águas ou pelas chamas, parece-me ser nosso destino.
Encontraram nas cinzas um casco de tartaruga marinha. Lembrei dos tempos de colônia em que os nossos desenhavam nos cascos das tartarugas marinhas o cosmograma Bakongo na intenção de comunicar com aqueles que ficaram em África. Se vivemos no lugar donde não se retornas, porque insistimos em lançar nos mares e nos céus, pássaros e tartarugas cujos corpos carregam mensagens aos ancestrais?Seria alimentar falsas esperanças? Não, irmã. Isso é resistir. Mandar à África notícias de nossos lugares de desterro neste longínquo território americano que atravessa os hemisférios sendo a morada possível para os eternos exilados.

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    Mariana Luiza

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