Radical no conteúdo e ampla na forma: a esquerda em busca do centro perdido
- Atualizado em 20/04/2020 10:13
O maior desafio da esquerda é construir discurso e programa capazes de conquistar maiorias sociais e políticas. Esta tarefa exige romper com o que Roberto Mangabeira Unger identifica como “ditadura da falta de alternativas”: a crise programática engendrada pela adesão da esquerda ao programa econômico de seus adversários, que com esta adesão hegemônica assume contornos de necessidade incontornável além das escolhas políticas. Algo que poderíamos chamar de um programa invisível, construído e implantado fora da disputa democrática sobre ideias e políticas públicas. Ao se render ao neoliberalismo, a esquerda abdicou das condições para juntar politicamente as classes médias e as classes populares. Os países que conseguiram esta junção política, esta fusão majoritária de interesses, foram os que rejeitaram o conformismo à ortodoxia neoliberal, rompendo com a miragem mágica de conseguir o progresso social por meio da confiança dos mercados financeiros internacionais.
A subserviência progressista foi merecidamente punida pelos eleitores. No Brasil não foi diferente. A fórmula geral da punição foi a implosão da âncora centrista com a qual contava a esquerda, o desmonte do “neoliberalismo progressista” identificado por Nancy Fraser. No processo de adesão ao programa de seus adversários, a esquerda buscou e ainda busca o centro político como lugar de apagamento e moderação das principais diferenças na esfera da política econômica, ou na “economia política” como falavam Marx e também os liberais com quem dialogava. O apagamento e a moderação destas diferenças seriam o único caminho para unir os pobres e a classe média em torno de uma agenda comum. Na prática, o que a esquerda tem feito, ao adotar este centrismo rendido, é desconectar a agenda da inclusão social e da redistribuição de renda da agenda da mudança da política econômica, combinando política identitária para minorias, política compensatória de transferência monetária para os pobres e política regulatória de serviços privados de educação e saúde para a classe média, ao preço de executar e ampliar a política rentista das oligarquias financeiras que promovem a oligopolização do controle das finanças, travestindo-se de mercado financeiro. Tudo isso na esperança de que a água morna centrista fosse acalmar os ânimos para sempre. Só que não foi assim. A classe média, ameaçada pela decadência social, se revoltou mais uma vez, restando para a esquerda, como no caso do Brasil, parcela das classes populares politicamente desorganizadas e por isso incapazes de conduzir aglutinação da maioria em torno de seus interesses, definidos quase exclusivamente no curto prazo. A situação social desta parcela das classes populares que restou para a esquerda, marcada pela desorganização e pela visão de curto prazo, facilita uma cooptação pelo bolsonarismo, o que torna o quadro ainda mais calamitoso.
É urgente reconectar a agenda da política social – inclusão social e redistribuição de renda – com a agenda da mudança da política econômica em torno de um projeto nacional de desenvolvimento centrado na soberania nacional. É preciso religar o que foi desligado. A agenda da reconquista do terreno perdido não consiste em um nacionalismo tosco. Soberania nacional não é isolamento nem ausência de dependência: é ruptura com formas assimétricas de dependência que impedem que as decisões coletivas fundamentais de que precisamos para nosso desenvolvimento sejam controladas pela política nacional.
A reconexão entre política econômica nacionalista e política social universalista consiste em mudanças sociais induzidas pelo sistema político no sentido de construir solidariedade complexa no plano nacional, oferecendo programa e discurso que façam o que chamo de fusão política majoritária de interesses sociais distintos em interesses políticos comuns, responsável pela criação de identificações coletivas suficientemente amplas e coesas parra sustentar decisões políticas. Na política social, esta solidariedade complexa requer a ruptura com a fragmentação entre política compensatória de transferência marginal de renda para os pobres e política regulatória de serviços privados para a classe média. A tarefa é atrair a classe média para os serviços públicos, para a escola pública, para o SUS. Na política econômica, o desafio é romper com o abismo institucional entre produção desigual e redistribuição marginal da riqueza. É preciso reinventar a receita do bolo, de modo que produção e distribuição não sejam momentos e processos desconectados, mas processos correlatos. A esquerda precisa conjurar o rebaixamento das expetativas e não se contentar em redistribuir pela tributação redistributiva a riqueza produtiva a apropriada de modo desigual no sistema econômico. É preciso transformar as estruturas sociais da economia. É preciso transformar e diversificar as formas de propriedade, recolocando a questão do controle dos meios de produção e da relação entre o capital e o trabalho no centro da agenda. O trabalho assalariado não serve mais como horizonte absoluto de trabalho livre garantidor de cidadania para todos. Formas alternativas de produção, consumo e financiamento como o trabalho cooperativo, que no século XIX figuravam como opções para superar a julgo do trabalho pelo capital, devem ser recuperadas e reformuladas à luz dos novos desafios. A inovação jurídica, especialmente nos direitos de propriedade, deve estar na ordem do dia. Em uma palavra, é preciso ousadia programática.
Muitos interlocutores preocupados com o destino da política de esquerda ainda estão presos à ideia de um centro político como lugar de apagamento e moderação das principais diferenças políticas. Acreditam que a moderação programática é o único caminho possível e/ou desejável. Precisam se dar conta que ela é parte do problema. Estão ainda reféns da confusão entre ser radical e ser sectário: partem da premissa de que um programa político radical, ousado, que busque soluções estruturais para problemas estruturais, é sempre sectário, estreito no espectro dos grupos e classes sociais que lhe dão sustentação. Esta confusão pode e deve ser desfeita, pois ser radical na dimensão programática não significa necessariamente sectarismo. Programas rebeldes de desenvolvimento nacional foram sempre radicais e contaram com ampla base de apoio envolvendo setores populares e médios. Quando não contaram com o apoio de setores burgueses, o apoio da classe média e dos setores populares garantiu, muitas vezes, as condições para a coerção política da minoria dissidente e entreguista. Não há lei social ou política que faça da classe média a linha de frente da burguesia antinacional e antipopular. Por mais que esta seja a configuração atual, não foi sempre assim.
É preciso recuperar as nuances e contradições da história política e a contingência das estruturas da ação social. A classe média está em disputa, como sempre esteve. É preciso ser radical no programa e amplo nas alianças. Radical no conteúdo e amplo na forma da comunicação política. O centro político perdido era um centro amorfo, marcado pelo “neoliberalismo progressista”, pelo rebaixamento de expectativas, pela idolatria institucional. O centro precisa ser reconquistado e reconstruído como centro radical. Uma esquerda em busca do centro não precisa ser uma esquerda rendida. Creio que o oposto é que vale: a esquerda só conseguirá reconquistar o centro perdido se for radical no que interessa às maiorias, e ampla na forma da comunicação e da organização política para aglutiná-las.
 
 
 

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    Roberto Dutra

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