Cuidar da economia e cuidar da saúde: o urgente e o importante
03/04/2020 12:25 - Atualizado em 04/04/2020 13:41
Celso Furtado
Celso Furtado
Roberto Mangabeira Unger
Roberto Mangabeira Unger
É falsa a escolha entre cuidar da economia e cuidar da saúde do povo. A curto prazo, como tem ocorrido no mundo todo, o sistema econômico deve ser subjugado ao imperativo da saúde: achatar a curva de contaminação pelo coronavirus para salvar o maior número de vidas possível. Mas o pensamento de curto prazo não deveria dominar as ações de “economia de guerra” que precisamos adotar com urgência. É preciso combinar o que é urgente com o que é importante.
O urgente é salvar vidas e preservar o que for possível da economia, garantindo as condições materiais mínimas – liquidez das empresas e famílias, contratos de trabalho etc.– para o isolamento social, medida inegociável para que o sistema de saúde possa cuidar do maior número de pessoas e salvar o maior número de vidas possível. O importante é combinar o escudo de proteção de famílias e empresas com um escudo protetor de médio e longo prazo, capaz de assegurar a capacidade da economia nacional em formular um projeto de desenvolvimento. Como todo projeto nacional de desenvolvimento é sempre rebelde em relação ao que prescrevem as potências que desejam manter a condição subjugada de nossa economia, um escudo protetor para o avanço de setores estratégicos, como a economia da saúde, o complexo de petróleo e gás, a indústria da defesa e a criação de um complexo industrial do agronegócio, é indispensável não apenas para o presente, mas também para o futuro. A crise do coronavirus abre uma janela de oportunidade para quebrar o dogmatismo neoliberal não apenas no momento de emergência, como é consenso, mas também em uma perspectiva duradoura. É aí que reside a disputa fundamental.
Não é pouca coisa o fato de quase todo mundo ter se tornado neokeynesiano e redistributivista. O apoio militante dos liberais e a propaganda da rede globo em defesa da renda mínima deixou sem discurso os intelectuais que insistem que a luta redistributiva é a questão política principal. A “elite do atraso” está fazendo seu processo de aprendizado moral que Jessé Souza tanto prega. Quem está surpreso com os liberais e a rede globo defendendo a renda mínima ainda está na superfície da questão econômica envolvida na crise. De fato, é importante marcar e valorizar a diferença entre liberais convertidos ao redistributivismo, como Armínio Fraga e Monica De Bolle, e genocidas como Paulo Guedes. Faz diferença sim.
No entanto, há uma outra diferença que está sendo esquecida. A diferença entre o Estado intervir para salvar a economia e manter o status quo, a liquidez das empresas e das famílias, e intervir para reordenar a economia, criando novas bases produtivas e implementando um projeto nacional de desenvolvimento e complexificação da economia. Os bolsonaristas que apoiam a infame política de Paulo Guedes são genocidas. Contra eles vale a pena apoiar os liberais convertidos ao redistributivismo. Mas estes liberais param na superfície da renda mínima. A questão estrutural de longo prazo é como reconstruir nossas estruturas econômicas, como aumentar nosso padrão de produção de riqueza, como dinamizar o desenvolvimento de nossas forças produtivas e incorporar os ganhos de produtividade em todos os setores da economia.
O desmonte do dogma monetarista que impõe restrições desnecessárias às capacidades financeiras do Estado é um passo fundamental. Ao emitir sua própria moeda, o governo central não está, em tese, submetido a qualquer restrição financeira e por isso não é obrigado a equilibrar receitas e despesas. Não há jogo de soma zero entre Estado e mercado. Se o Estado não fizer política anticíclica radical, para garantir liquidez das empresas e das famílias, só restará mesmo o próprio Estado. Neste ponto André Lara Resende está à frente de seus colegas liberais. Mas este passo fundamental ainda não é suficiente. A soberania monetária do Estado nacional é de fato crucial para superar o subdesenvolvimento, mas ela não depende apenas da capacidade de emissão da moeda nacional. Depende também, e decisivamente, da exportação de produtos de elevado valor agregado e por isso da soberania tecnológica. Enquanto a moeda norte-americana for necessária nas transações internacionais correntes, a soberania monetária depende de uma política de exportação como fizeram China, Coreia do Sul, Alemanha, entre outros. A soberania monetária é, por sua vez, condição necessária para a soberania financeira, dimensão crucial para superar a dependência extrema das oligarquias representadas por Paulo Guedes.
Não é preciso uma “revolução socialista” para superar as relações de dependência e o subdesenvolvimento. Mas tampouco basta um processo de aprendizado moral que converta nossas elites ao redistributivismo. Precisamos de uma revolução nacional capaz de transformar nossas forças produtivas e elevar o padrão de produção de riqueza em todos os setores da economia. É óbvio que a redistribuição é fundamental. Está diretamente ligada à garantia de direitos sociais. Mas não se pode garantir nem redistribuição nem direitos sociais sem soberania nacional e portanto sem transformação estrutural de nossa economia, o que, por sua vez, como a história mostra, não se pode alcançar sem coerção política sobre as elites econômicas.
O caso da economia da saúde é exemplar. Neste momento de urgência, precisamos importar massiva e rapidamente insumos, testes, equipamentos de proteção individual, respiradores, máquinas de UTI, entre outras coisas. É urgente, e nem isso este governo genocida consegue fazer. Prefere arrumar intrigas com a China, de onde estas importações deveriam vir. A garantia do direito social à saúde, hoje um consenso que engloba a esquerda e os novos convertidos ao redistributivismo, não se faz sem o desenvolvimento das forças produtivas. No entanto, a urgência das importações deixa ainda mais clara nossa dependência tecnológica em um setor tão crucial.
É preciso cuidar do urgente, mas não esquecer do importante. E o importante é o desenvolvimento de um complexo industrial da saúde, como propôs Ciro Gomes nas eleições de 2018. Importar é agenda urgente de curto prazo. Substituir importações é agenda importante de médio e longo prazo. Se tivéssemos cuidado da agenda importante não estaríamos de mãos atadas na agenda urgente, e ainda teríamos uma chance de acumular montanhas de dólares com a exportação de produtos e serviços de alto valor agregado.
O que fica claro no exemplo da saúde é que a industrialização, a complexificação da economia e o desenvolvimento das forças produtivas, mesmo não sendo suficientes, são condições necessárias para superar o subdesenvolvimento e a subcidadania. Não há cidadania social sem isso. Não se trata de crescer o bolo para depois redistribuí-lo. É preciso reinventar a receita do bolo, de modo que a produção e a distribuição equitativa da riqueza não sejam dois momentos distintos e difíceis de conciliar, mas sim processos interligados.
 
 
 
 
 

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    Roberto Dutra

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