A visão da Brasileira Pietra Soares Estudante de Medicina em Portugal e o COVID-19, Abrindo a Boca Para Marco Barcelos
- Atualizado em 11/04/2020 20:00
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
1- Pietra Soares, optar por fazer medicina em Portugal foi um desafio. E agora tendo que enfrentar a pandemia do Covid-19. Como está sendo a vida no âmbito acadêmico?
No que toca o aspecto acadêmico em Portugal, as faculdades de medicina encerraram as suas atividades presenciais no dia 9 de março.
Desde então, todos os órgãos acadêmicos têm buscado, incansavelmente, as melhores maneiras de continuar o nosso ano letivo em casa, não apenas relativamente às aulas, mas também procurando as melhores soluções para realizar algumas avaliações online.
Como o pico da pandemia em Portugal é uma incógnita, não temos perspectivas de voltar às nossas atividades acadêmicas presenciais esse ano, uma vez que o ano letivo no nosso país começa em Setembro e termina em Junho/Julho.
Nossas aulas têm seguido o calendário e horários normais, sendo lecionadas através de plataformas online de videoconferência, como o Zoom/Colibri, ou mesmo por meio de vídeos gravados e disponibilizados na plataforma Moodle.
A maior dificuldade, para mim, relativamente ao regime de aulas não presenciais, é encontrar maneiras de refazer a minha rotina e torná-la produtiva.
Além disso, a associação de estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, instituição de ensino na qual estudo, lançou um site inovador que deixo aqui, caso seja do interesse de alguém consultá-lo (https://aefmup.pt/corona/), com o intuito de oferecer sugestões de atividades aos alunos para que tentemos fugir à monotonia desses meses difíceis. Atualizam o site diariamente com dicas de receitas, vídeos de personal trainers com treinos que possam ser feitos em casa e sem aparelhos, de maneira a estimular uma rotina mais saudável e trabalhar a nossa saúde mental em quarentena, cursos online sem custos associados, congressos por videoconferência com médicos e profissionais das mais diferentes áreas da saúde, dicas de filmes e livros e fóruns políticos.
Além disso, a Universidade do Porto está a oferecer subsídios de até 350 euros para estudantes nacionais e internacionais que estejam em situação de fragilidade social pela propagação da pandemia no país. Implementou, ainda, a Linha de Apoio Psicológico da U. Porto para estudantes que precisem de acompanhamento psicológico. A linha é gratuita e funciona todos os dias, inclusive aos fins de semana.
Sinto que estamos muito bem entregues à nossa direção acadêmica e estou bastante satisfeita com a evolução do ensino virtual que, acredito eu, tenha uma tendência crescente, ao longo dos próximos anos, de ocupar um espaço importante em todo o mundo.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
2- Como os portugueses estão enfrentando pandemia, no aspecto psicossocial?
Gostaria de começar com um excerto da matéria publicada no jornal português ‘Expresso’, em que José Miguel Caldas de Almeida, professor de Psiquiatria e Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, fez um comentário muito assertivo, na minha opinião, no que toca o aspecto psicossocial da pandemia em Portugal.
“Ele diz não ter dúvidas de que a atual situação de pandemia terá “um impacto muito significativo” na saúde mental dos portugueses, mas esse impacto será tanto menor quanto maior a capacidade do Governo de colmatar as “várias insuficiências” e evitar “a rutura dos serviços de saúde públicos e do sistema de apoio social”. “O que aprendemos com outras emergências, como a crise financeira de 2008, é que grandes privações ao nível dos rendimentos, desemprego, dívidas e insegurança em relação à possibilidade de manter a habitação são fatores com um grande impacto na saúde mental”.
É preciso pensarmos que há pessoas a perderem familiares, amigos e que foram privadas da despedida; pessoas que não podem regressar às suas casas e que olham, todos os dias, para situações que nunca antes tinham visto e que apenas a própria experiência e o tempo ensinarão a melhor maneira de lidar; pessoas desempregadas, tomadas pelo medo e pela insegurança de não saberem como poderão sustentar a família nos próximos meses; pessoas sem condições para comprar bens essenciais a preços mais altos nos supermercados; pessoas doentes.
É natural que os conflitos domésticos e a tensão aumentem, inclusive nos casamentos, assim como a ansiedade e o medo de serem infectados com o novo coronavírus.
Temos profissionais de saúde assustados. Assistem, diariamente, a todas as suas certezas e experiência profissional de anos se esvair e dar lugar a uma incerteza e medo jamais vistos em seu trabalho. No entanto, dizem nunca ter sido mais recompensador exercer a sua profissão.
Além do apoio psicológico oferecido pelas universidades do país, como mencionado anteriormente na entrevista, também a Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) e o Ministério da Saúde criaram, em conjunto, uma linha de apoio que conta com mais de 60 psicólogos credenciados pela ordem, estando apta a receber chamadas telefônicas de cidadãos comuns e de pessoas na área da saúde.
A pandemia certamente deixará marcas e trará dificuldades para todos os cidadãos, mas temos que acreditar que vamos conseguir ultrapassar as suas sequelas da melhor maneira possível.
E nunca podemos nos esquecer que, tão importante quanto estar fisicamente bem nessa altura, é ter uma mente sã, e, por esse motivo, deixo aqui um apelo à todas as pessoas que sintam que precisam de apoio psicossocial neste momento: não tenham vergonha de procurar ajuda.
 

3- Pietra Soares, como o governo português está investindo para tratar a COVID-19?
O governo português renovou o Estado de Emergência, decretado pela primeira vez por um período de 15 dias no dia 16 de março. Junto a ele, a restrição da circulação de pessoas no país; a suspensão de todas as atividades letivas presenciais das escolas e universidades; o encerramento de discotecas; a suspensão de visitas a lares em todo o território nacional; o estabelecimento de limites de frequência em supermercados de modo a manter uma distância de segurança; a diminuição abrupta no número de voos; a criação de uma linha de crédito de apoio à tesouraria das empresas no valor de 200 milhões de euros; apoio financeiro excecional a trabalhadores que tenham de ficar em casa a acompanhar filhos de até 12 anos, no valor de 66% da remuneração base.
No caso de crime de desobediência às medidas impostas pelo estado de emergência, é aplicado o artigo 348.º do Código Penal, que estipula que “quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Tendo em mente o agravamento de problemas sociais que o isolamento poderá agravar, o governo criou, ainda, um plano coordenado de contingência em matéria de prevenção e combate à violência doméstica em articulação estreita com a Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica.
 

4- A quantidade de infectados e pessoas que morreram com o COVID-19, e qual é o prognóstico do governo para os próximos 15 dias ?
No dia 7 de abril, os dados divulgados foram os seguintes: 12442 infectados (crescimento de 6% em relação ao número de casos do dia anterior) e 295 mortos (o que corresponde a 2,8% do número de casos e representa uma subida de 11% em relação ao dia anterior).
O número de internados em cuidados intensivos foi de 271, também segundo o relatório divulgado pela Direção Geral de Saúde no dia 7 de abril, representando 2,2% dos infectados, e um crescimento de apenas 0,4% em relação ao dia anterior.
Já há, também, 184 casos de pessoas recuperadas.
As previsões das autoridades de saúde sobre a fase mais aguda da doença em Portugal apontavam para o mês de maio. No entanto, no último dia 2 de abril, a Direção Geral de Saúde optou por maior cautela ao afirmar que nós só saberemos que estivemos no pico quando começarmos a descer. A curva da pandemia em Portugal ainda está em ascensão, embora não seja uma subida abrupta nem exponencial.
Como Portugal encontra-se em fase de mitigação da doença desde o dia 26 de março, a terceira e mais grave fase de resposta à doença Covid-19, ativada quando há transmissão local, em ambiente fechado, e/ou transmissão comunitária, a expectativa é que, nos próximos 15 dias, os casos continuem a subir, podendo ou não atingir o pico, uma vez que, como mencionei, as autoridades do DGS preferem, nesse momento, ser mais cautelosos e não falar em datas.
Não obstante, o governo português deu parecer favorável à proposta de decreto do Presidente da República para a renovação do Estado de Emergência por mais 15 dias, no último dia 2 de abril.
O Presidente Marcelo Rebelo de Souza disse, ainda, haver uma forte esperança de que, no decorrer do mês de maio, os portugueses possam, de maneira lenta e gradual, retornar às suas rotinas.
 

5- A Espanha está a cada dia mais crescendo o número de infectados e mortos, e fica bem ao lado de Portugal. Quais as medidas que o governo português tomou para evitar a contaminação?
A situação em Espanha é realmente alarmante, embora nos últimos dias tenha vindo a sofrer um declínio esperançoso, que hoje foi contrariado por um novo aumento no número de mortes.
No entanto, desde o dia 16 de março e até o próximo dia 15 de abril, a circulação entre Portugal e Espanha foi limitada ao transporte de mercadorias e a viagens motivadas por razões profissionais, e, por esse motivo, apenas 9 fronteiras terrestres entre os dois países foram mantidas abertas. O tráfego aéreo, marítimo e ferroviário também foram suspensos.
O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) está responsável, desde então, por proceder aos controles de fronteira, em articulação com outras forças de segurança, nos nove pontos de circulação definidos. Também a Guarda Nacional Republicana e a Guarda Civil espanhola estão a fiscalizar a circulação nessas e em outras zonas.
Em termos de comparação, o número de casos e de óbitos pelo novo coronavírus no mundo, nota-se uma diferença entre os casos em Portugal e Espanha. Essa disparidade poderá, entre outros motivos, ser explicada pela demora do governo espanhol em reagir. A Espanha esperou 43 dias desde o primeiro caso do vírus no país para decretar Estado de Emergência e fechar escolas e estabelecimentos públicos “não essenciais”. Em contrapartida, o governo português começou por fechar escolas 14 dias após o primeiro caso registrado no país e decretou Estado de Emergência após 17 dias, o que pode nos ter conferido alguma vantagem em relação aos outros países europeus que vivem situações mais graves no momento.
Número de casos e mortos por COVID-19 em Portugal e no mundo. Fonte: ECDC (European Centre for Disease Prevention and Control).
 

6- Pietra Soares, qual é o seu sentimento com tudo o que está acontecendo no mundo, e o quê poderia falar para uma reflexão?
Gostaria de iniciar a minha reflexão com duas declarações. A primeira, de um médico intensivista português que admiro muito, Gustavo Corona- “A coragem é o que sobra da motivação quando ultrapassa o medo”. A segunda é uma frase muito divulgada nas redes sociais no último mês, de autoria desconhecida- “Vou para o hospital por ti e pelos teus. Podes ficar em casa por mim e pelos meus?”.
Acho que não há nenhuma frase no momento que me faça tanto sentido como essa. É preciso ter empatia sempre. Não precisamos viver a situação de dor e sofrimento do outro para nos colocarmos em seu lugar, mesmo sem conhecer, e fazer o que está certo e o que gostaríamos que fosse feito por nós.
Há profissionais de saúde privados, muitas vezes por decisão própria, de ver as suas famílias. Para não falar nos milhares de doentes; alguns até mortos. Salvar é a grande missão da vida dessas pessoas, mas nós também precisamos fazer o mínimo por elas, que é estar em casa.
Por isso sempre que surgir aquela vontade de tomar um sol na praia, comer alguma coisa diferente no seu restaurante preferido, lembre que você não é o único aprendendo a lidar com os seus próprios desejos nesse momento e que há pessoas passando por verdadeiros pesadelos. Temos que respeitar essas pessoas, a sua dor e o seu sacrifício, e continuar torcendo por dias melhores em que poderemos voltar a estar com quem amamos e a fazer tudo aquilo que gostamos.
Acho que essa é a mensagem que gostaria de deixar. Fiquem em casa. Confiem na vossa linha de frente e obedeçam às recomendações das autoridades de saúde de maneira a protegerem a vocês, às vossas famílias, à todos os profissionais de saúde que se arriscam todos os dias por nós, aos empregados de limpeza nos hospitais, que certamente estão a trabalhar muito mais que o habitual, a todos os trabalhadores envolvidos na produção de bens essenciais e materiais de proteção, e aos nossos cientistas, que trabalham incansavelmente na busca por vacinas e alternativas farmacológicas que possam funcionar contra essa doença, lutando todos os dias contra o desconhecido.
Essa luta também é sua. É de todos nós. Sejamos agentes de saúde pública. Hoje e sempre.
Pietra Soares Rodrigues
Hospital de Campanha do INEM montado junto ao serviço de urgência do Hospital de São João, no Porto em Portugal.

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    Marco Barcelos

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