o abraço que nunca soube dar
- Atualizado em 16/04/2020 01:18
O abraço que nunca soube dar
Cândida Albernaz
- Querido, não demore. Estamos atrasados.
- Não se preocupe, com certeza seremos os primeiros a chegar.
- Não se você continuar se olhando no espelho a toda hora. Nunca vi um homem tão vaidoso.
- Por que a pressa? Você nem mesmo gosta de Marta e Artur. Vive dizendo que ela é fútil e sem inteligência e o quanto ele é grosseiro.
- Mas se aceitamos o convite...
- Está bem, podemos ir.
Lembro de quando me viu beijando Marta na varanda estreita e escura. Mesmo assim consegui ver seus olhos brilhando com as lágrimas que se acumularam ali.
Não falou nada. Voltou para a sala onde estavam os outros.
Nunca tocou no assunto.
* * *
 
Os pés se arrastam e não consigo fazê-los obedecer minha vontade.
Em volta observo que a vida continua correndo. As pessoas parecem ter pressa. Também fui assim.
Estou com dor nas costas. Hoje mais do que ontem.
Gosto de ficar na areia olhando o mar. Ele acalma e traz lembranças que me fazem pensar sem sofrer.
Passo as mãos nos ralos fios de cabelo que ainda possuo. A doença carregou tudo com ela: meus cabelos, meus movimentos e a ansiedade de seguir em frente.
* * *
 
- Não fique assim, Isabel. Vai ser melhor para nós dois.
- Como você pode pensar que se afastar de mim pode ser bom? E nossa filha?
- Ela pode estar comigo durante as férias. Sempre tive vontade de morar na Espanha e nunca pude. Primeiro a falta de dinheiro, depois o casamento e sua gravidez. Serão apenas três anos.
- Vou com você. Da mesma forma que fechou seu consultório, fecho o meu. Conseguirei um trabalho por lá, mesmo que seja em outra área.
- Vou sozinho. Está decidido. Preciso disso e não vai me visitar.
Sempre respondi suas cartas de forma evasiva. Vivi intensamente esta época não me preocupando com o que você sentia.
Voltei um ano depois sem arrependimento algum.
Depois de muito insistir, reatamos nosso casamento. Perguntas não foram feitas ou explicações dadas. Não quis saber o que fez nesse tempo e você aparentemente também não.
* * *
 
Amanhã volto para a cidade. Faço novos exames para ver se houve alguma regressão. O tratamento que faço é agressivo, mas jamais penso em desistir.
Daqui a pouco vou entrar porque o vento está mudando e não posso arriscar em pegar uma gripe.
O mar está ficando num tom azul escuro. O entardecer me comove. Não foi sempre assim. Houve uma época em que pensar em mim era a única coisa que importava.
* * *
 
Quando voltei da Espanha, percebi em você a saudade que sentia e a insegurança em me aceitar outra vez. Por inúmeras vezes, vi tristeza e tive certeza de que para ficar comigo, deixava alguém para trás. Talvez alguém melhor do que eu. Fingi não notar estes momentos e agi como se você optar por mim, depois de tanto tempo fosse a coisa mais natural a ser feita.
Seja lá o que sentia, acabou e consegui tê-la inteira novamente.
* * *
 
Puxo o casaco no peito para que aqueça mais. Levanto da cadeira com sua ajuda e já em pé, firmo em seus ombros. Olho para você e sorrio. Gosto das rugas em volta dos olhos. A idade fez com que adquirisse uma expressão mais forte, que acho bonita.
Não havia notado no passado, mas sempre o mais forte de nós dois foi você.
Achei que por ser homem, cuidaria de sua velhice, para compensar o que fiz. Mas, continuou sendo você a buscar força dentro de si mesma para seguir em frente.
Desculpe se nunca soube demonstrar, mas a amo por tudo o que fiz.
Seus braços em minha cintura e o meu em seu ombro é quase o abraço que eu nunca soube dar.
 

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