dependência
- Atualizado em 02/04/2020 10:18
Dependência
Cândida Albernaz
Olhando para ele na cadeira de rodas, dependendo de mim para quase tudo, quase consigo sentir amor.
Dou os remédios na hora certa, levo à fisioterapia uma vez por semana, coloco a comida do jeito que gosta: feijão com farinha, arroz quentinho e uma carne macia, pois os dentes já não são bons.
Quando meu marido está atrasado, sou eu quem lhe dá banho, às sete horas da manhã. Reclama porque acha errado que eu o veja nu, mas sabe que se não for desse jeito, vai passar o dia sem se lavar. Eu e Amâncio trabalhamos muito. Sou enfermeira e ele pintor. Costumo dar plantão duas vezes na semana e nesses dias, quem cuida do meu pai é minha filha mais velha. Gosta do avô, que tem o hábito de contar histórias engraçadas. Ela não o conheceu como eu e minha mãe. O que sabe dele é o que ele repete sempre.
- Ainda bem que soube criá-la. Trabalhei muito para que sua mãe estudasse e perdi muitas noites de sono cuidando dela. Agora que preciso, colho os frutos. Eu o olho de lado e tento sorrir.
Quando criança, por inúmeras vezes não tive muito que comer, e quando isso acontecia, era graças a minha mãe que a situação se modificava. Trazia da casa da patroa, que sabia de tudo, alguma sobra do almoço. Ela ajudava mamãe como podia.
Com dez anos, eu sabia chegar a casa dela sozinha. Saindo do colégio, passava por lá e almoçava com mamãe no canto da cozinha. Agradeço muito a esta senhora, pois inúmeras vezes essa era a única refeição que fazia. Quando passaram a dar merenda no colégio, eu tomava uma sopa quentinha lá mesmo.
Minha mãe, dona Marilda, como eu a chamava de vez em quando, não teve uma vida fácil. Protegia-me como podia.
Às vezes, muitas vezes, meu pai chegava a casa, bêbado, de madrugada e me acordava gritando.
- Venha para a sala. Quero que dance pra mim.
Colocava-me em cima da mesa de madeira e fazia com que eu pulasse enquanto batia palmas. Minha mãe, em pé ao lado, olhava assustada com medo que eu tropeçasse ou caísse, porque se isso acontecesse, ele me batia até que ela se metia entre nós, para apanhar no meu lugar.
Eu nem lembro a quantidade de vezes que a acompanhei até o hospital. Tinha sempre uma desculpa, caí da escada, uma bicicleta me pegou, fui assaltada... E sempre uma razão.
- Tenho medo, minha filha, que ele mate a gente.
A patroa dela não pagava sempre no mesmo dia para que ele não soubesse a data certa. Quando coincidia de meu pai passar na hora em que ela saía do serviço, com o dinheiro recebido pelo trabalho do mês, conseguia roubar tudo, ou quase.
Dona Marilda com o tempo passou a esconder metade do salário dentro da calcinha, o único lugar em que ele não metia a mão para procurar.
Uma vez, minha mãe falou que não ia entregar. Ele começou a bater nela na rua e quando caiu no chão, até dentro do sutiã ele futucou para ver se estava ali.
Papai também tinha a mania nos dias de bebedeira, de não querer que comêssemos. Só comíamos se fosse escondido. Até hoje não entendo o porquê. Se chegasse a casa e sentisse cheiro de comida feita, batia em minha mãe até cansar.
Dona Marilda morreu com cinquenta anos. O coração foi ficando fraquinho e ela não aguentou. Morreu nova, minha mãe, mas para ela talvez tenha sido melhor.
A última surra fora dois anos antes. Nessa época eu já havia saído de casa e acabava meu curso de enfermagem. Ia vê-la sempre e procurava levar algo gostoso que comprava na padaria. Meu pai ficou diabético e tinha a pressão alta. Não parou de beber, só de bater.
Conheci o Amâncio na minha formatura e nos casamos dois anos depois. Papai participou sóbrio do casamento, e eu agradeci com os olhos.
Hoje tomo conta dele. A falta de cuidados que a doença exigia, fez com que perdesse uma das pernas. Não vejo nele remorso ou arrependimento. Parece-me que acredita nas mentiras que conta para minha filha. Eu não o desminto. Prefiro que ela pense que seu avô foi o homem que
ele diz ter sido e algumas vezes, sento junto com os dois e fico ouvindo-o contar o quanto minha mãe era bonita e como ele a amava e cuidava dela para que nada lhe faltasse.

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