Literatura estrangeira em 2019
* Arthur Soffiati 12/03/2020 13:15 - Atualizado em 24/03/2020 18:20
Livros mencionados na
Livros mencionados na "Folha Letras" desta sexta / Divulgação
Caminho do centro do mundo ocidental para o mundo ocidentalizado. Em outras palavras, examino o que foi produzido na Europa — coração do ocidente — e o que foi produzido na América não portuguesa, na África e na Ásia e publicado ou republicado em 2019. Não há preconceito neste método. Apenas acompanho o processo de globalização ocidental e seus reflexos na literatura.
Do mais antigo para o mais novo, li Gustave Flaubert, Jorge de Sena e Ian McEwan entre os europeus. De Flaubert, foi lançado “Três contos” (São Paulo: Editora 34), livro de 1877 traduzido por Milton Hatoum e Samuel Titan Jr., a partir da edição francesa de 1986. Ao se lançar ao empreendimento de escrever os contos, Flaubert acreditava que não tinha mais condições de redigir o próprio nome, mas os contos são considerados obras-primas maduras.
O livro reúne três contos: “Um coração simples”, “A legenda de São Julião Hospitaleiro” e “Herodíade”. Os elos a unirem os três são a pesquisa, a forte presença de animais, a concupiscência e a fascinação pelo acúmulo de objetos. A personagem central de “Um coração simples” é Felicité, mulher pobre que só teve um amor na vida, continuando solitária depois dele e acumulando objetos em seu quarto miserável. Ela se tornou empregada de uma mulher rica e se afeiçoou a seu filho, a quem tratava também como filho e que a abateu mais ainda com sua morte. Depois, apegou-se a um papagaio, que também morreu e foi empalhado a seu pedido. Seu fim foi melancólico. Flaubert demonstra com muita habilidade que se pode escrever uma boa página literária sobre vidas lineares e aparentemente desinteressantes para a literatura. Não existem personagens medíocres, e sim escritores medíocres. Flaubert é um escritor genial, podendo arrancar água da pedra.
Dos três contos, “A legenda de São Julião Hospitaleiro” é o mais expressivo a meu juízo. Parece que o cristianismo herdou traços da tragédia grega, que não deve ser entendida como drama. Na tragédia, as vidas humanas são previstas no nascimento, como no caso de Édipo, não se podendo fugir do destino por mais que se tente. Ao nascer, um cigano mendigo previu uma vida de glória e de sangue para Julião. De fato, já na adolescência, Julião revelou-se um caçador impiedoso, provocando matanças impiedosas de animais. Certo dia, ele avistou um casal de cervos com um filhote. Abateu os três apenas por desejo de sangue. Antes de morrer, o macho vaticinou que sua maldade mataria seu pai e sua mãe. Ele deixou de caçar animais e foi caçar homens. Acabou se casando com uma princesa e se tornou um rei poderoso. Para não fugir da predição, acabou matando seus pais ao encontrá-los cobertos em sua cama. Julgando que sua mulher o traía, atingiu os dois mortalmente. A partir de então, abandonou tudo e cobriu-se de andrajos. Sua penitência levou-o à santidade.
“Herodíade” narra em detalhe a passagem bíblica em que a bela Salomé pede a cabeça de João Batista. O conto exigiu muita pesquisa.
Fernando Pessoa não foi o último poeta português. Sua genialidade pode não ter sido superada. Mas a poesia de um país não depende só de um poeta genial. Depois de Pessoa, apareceram vários bons poetas. Em certa medida, eles são desconhecidos do leitor médio, embora a língua favoreça a leitura. Contudo, a divulgação de seus livros não tem sido das melhores. Assim, fica mais fácil conhecê-los por meio de antologias. Ultimamente, pudemos conhecer a produção poética de Sophia de Mello Breyner Andresen, pela antologia “Coral e outros poemas” (São Paulo: Companhia das Letras), e Manuel António Pina, com a coletânea “O coração pronto para o roubo” (São Paulo: Editora 34). Em 2019, foi a vez de Jorge de Sena, com a antologia “Não leiam delicados este livro” (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo).
Sena morou no Brasil e naturalizou-se brasileiro. Suas ideias políticas o expulsaram para o Brasil, e o regime militar brasileiro levou-o a se transferir para os Estados Unidos. Sua poesia revela sua concepção de mundo. O poema é, para ele, um campo de luta existencial, política e sexual. Por que tanto sofrimento? Por que o poema se transforma numa arena em que o eu poético se torna tão explícito? Sena ama e detesta Portugal. Num de seus poemas, ele revela seu amor à pátria: “Eu não posso senão ser/desta terra em que nasci./Embora ao mundo pertença/e sempre a verdade vença,/qual será ser livre aqui,/não hei-de morrer sem saber.” Em “A Portugal”, ele começa parodiando Camões (“Esta é a ditosa pátria minha amada...”) para terminar considerando Portugal um país abjeto: “Torpe dejecto do romano império;/babugem de invasões; salsugem porca/de esgoto atlântico; irrisória face/de lama, de cobiça, e de vileza,/ de mesquinhez, de fátua ignorância;/ terra de escravos, cu pro ar ouvindo/ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;/terra de funcionários e de prostitutas,/devotos todos do milagre, castos/nas horas vagas de doença oculta”. Noto que os portugueses têm dificuldade de resolver o dilema criado pelas glórias passadas e o julgamento presente de tais glórias. No livro “Metamorfoses, seguidas de quatro sonetos a Afrodite Anadiomena”, de 1963, ele externa seu lado clássico, como Ricardo Reis, e se distancia mais do que contempla e que inspira seus poemas. Os quatro sonetos, contudo, parecem uma demonstração de conhecimentos e de exibicionismo. Tanto que exigem um glossário para o entendimento.
Ian McEwan é considerado um dos grandes escritores ingleses da atualidade. Ele já se consagrou com livros que se tornaram clássicos. Além de escrever bem, McEwan gosta das grandes histórias. Mesmo que o cotidiano entre em sua ficção, deve ele se inserir em enredos com finais inesperados. Em 2019, mais um livro seu chega ao Brasil. “Maquinas como eu” (São Paulo: Companhia das Letras) gira em torno de um passado que não existiu, um passado alternativo em que a Inglaterra perdeu a Guerra das Malvinas para a Argentina, em que Margareth Thatcher foi desacreditada como Primeira-Ministra, em que os robôs já começam a fazer parte da vida cotidiana e em que o genial matemático Alan Turing está vivo. Ele resistiu à pressão pública e governamental por ser gay e não se matou. Ao contrário, tornou-se uma grande figura na Inglaterra do início da década de 1980.
Turing está envolvido com a concepção de robôs com forma humana, que acabam adquirindo comportamento humano contra a vontade de seus criadores. O principal personagem é um robô homem que acaba se apaixonando pela namorada de seu dono e adquirindo vida própria. A produtividade de McEwan é estupenda. Em 2020, chega ao Brasil um novo livro seu, ainda não lido pelo autor destes comentários.
Quem leu “O apanhador no campo de centeio”, de J.D. Salinger, talvez estranhe “Nove histórias” (São Paulo: Todavia) reunindo nove contos dele. O livro é aberto por um koan: “Conhecemos o som de duas mãos que aplaudem. Mas qual o som de uma mão que aplaude?”. Os koans do zen-budismo parecem não ter sentido. Os contos de Salinger também. O primeiro — “um dia perfeito para peixes-banana” — soa a nonsense. Os cortes e as mudanças de cenários são bruscos. Bem que o crítico Alcir Pécora alertou para a dificuldade de traduzir Salinger. Ele usa muita linguagem coloquial e gírias. É norte-americano demais. A literatura dos Estados Unidos é uma literatura europeia produzida fora da Europa. Em seus contos, já se pode ver algo de Paul Auster, Philip Roth e Lydia Davis.
Da chilena Lina Meruane, foi publicado “Tornar-se palestina” (Belo Horizonte: Relicário). A autora é professora nos Estados Unidos. Suas origens estão na maior comunidade do mundo da diáspora palestina, que fica no Chile. Ao criarem o Estado de Israel e guerrearem os países vizinhos, os judeus geraram uma grande diáspora de palestinos. Israel foi criado depois da Segunda Guerra Mundial para absorver os judeus da diáspora criada pelo império romano em 70 d.C. No livro, elogiado pela crítica e considerado um dos melhores de 2019, Meruane se descobre palestina aos poucos. Não se trata de ficção, mas de um relato em que a autora narra sua procura e seu achado.
Suas conclusões não são tão incisivas quanto aquelas alcançadas por alguns palestinos, como Edward Said, e por alguns judeus, como Edgar Morin. Contudo, deve-se considerar que a autora narra sua busca reconhecendo suas limitações e sofrendo muito com a sorte do seu povo.
Do outro lado do mundo, veio o romance da japonesa Sayaka Murata com o título de “Querida Kombine” (São Paulo: Estação Liberdade, 2018). Embora lançado em 2019, ele traz a data do ano anterior. Trata-se de uma obra de ficção que nos permite mais refletir sobre a aculturação promovida pelo ocidente do que por seu valor estético, pois traduzir é uma tarefa ingente que exige muito conhecimento e cuidado. Kombine é o nome japonês de loja de conveniência. Tem de tudo. A personagem principal se movimenta num ambiente bastante familiar ao coração do ocidente — Europa e Estados Unidos. O passado japonês não é mais uma questão crucial na escritora, como nas obras de Yukio Mishima, por exemplo. O choque de culturas está superado em Sayaka Murata.
Não se pode dizer o mesmo quanto à emergente e pujante literatura da África. Primeiramente, seus Estados nacionais ainda não se incorporam ao cotidiano do continente. Em outras palavras, as culturas africanas anteriores ao ocidente ainda não reconheceram totalmente as fronteiras nacionais criadas pela dominação europeia e reconhecidas oficialmente depois das independências. A África ainda não alcançou o mesmo grau de ocidentalização do Japão, por exemplo. Ela ainda tem um pé fortemente fincado no passado, enquanto que o outro pé ainda não tem um contexto ocidentalizado por baixo. É o que se pode constatar no livro “Meu pequeno país”, de Gaël Faye (Rio de Janeiro: Rádio Londres, 2018). Geralmente, há muito de experiência pessoal nos autores africanos. Faye narra a sua vida em Burundi, seu país natal, enquanto viveu nele. Passado e presente estão lado a lado.
Ocorre o mesmo com a nigeriana Ayòbámy Adébáyò em “Fique comigo” (Rio de Janeiro: Herper Collins, 2018). Os escritores nigerianos têm uma ligação grande com os Estados Unidos. Vários moram lá e já são considerados representantes da literatura norte-americana. Muito elogiada por Margaret Atwood, Adébáyò mostra uma Nigéria dividida entre o tradicional e o moderno. O romance aborda a vida de um casal em que o marido já está bastante ocidentalizado e a mulher conserva vários traços do passado. Em que ainda existe a poligamia e a imposição de gerar filhos tanto para o homem quanto para a mulher.

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