perfeito
- Atualizado em 26/03/2020 07:57
Perfeito
Cândida Albernaz
 
Um usa o papel para mostrar o que tem a falar.
 
Estava amanhecendo, a luz do dia entrava em seu quarto com força. Esquecera mais uma vez de fechar as cortinas.
Levantou da cama com preguiça e dirigiu-se ao banheiro. Olhou o cabelo bagunçado e riu de sua própria cara. Ligou o chuveiro e esperou que a água esquentasse.
O café foi feito na hora e o pão fora torrado no pequeno aparelho que ficava em cima da bancada da pia.
 
Outro nunca sabe o que dizer.
 
Estava escurecendo. Sabia que o telefone chamaria a qualquer momento. Decidira não mais.
Era sempre da mesma forma: a cada sete dias, a voz rouca, que jurara nunca mais querer ouvir a seduzia. Encontravam-se e só.
- No mesmo lugar mais tarde.
Repetia para si: nunca mais.
 
Um traz as palavras no olhar.
 
Ouviu o barulho da bicicleta que o carteiro usava. Imaginava o que ele teria deixado em sua caixa de correio. Além de uma conta ou outra a pagar.
Não teve pressa. Terminou de tomar seu café e saboreou com a imaginação o que acharia no meio dos envelopes.
Era um método antigo, mas gostava de analisar a letra que vinha na correspondência, antes mesmo de absorver o que estava escrito nela.
 
Outro come as palavras enquanto olha.
 
Prometeu a si mesma e não estava conseguindo cumprir.
Mal sabia qualquer coisa sobre ele. Não chegara aos poucos. Veio como um vulcão tomando para si, pegando o que queria sem dar explicações. E ela se deixou ir como uma criança que não consegue resistir a uma bala.
Perdera as contas de quantas vezes saíram. Contava nos dedos quantas conversaram.
 
Um é sensível mesmo ao transmitir saber.
 
Abriu com calma. Sentou-se no sofá para isso. Os outros envelopes foram deixados em cima da mesinha. Mais tarde veria do que se tratavam.
As palavras escritas ali eram doces, falavam de vida sonhada, de pés fora do chão, de vontades não concretizadas.
Sorria enquanto engolia cada letra do alfabeto. Fazia bem aquela sensação de fora do ar. Tanto o que dizer que não sobrava tempo para sentir a falta física.
Uma vez por semana a carta chegava. Respondia, e aquilo a alimentava até que viesse a próxima.
 
Outro só sabe sentir através do toque.
 
Quando ligasse novamente, diria estar ocupada. Aliás, estaria ocupada. Sua amiga não queria ajuda para a monografia que precisava preparar? Pois acabou de resolver que a ajudaria. E seriam todas as noites daquela e da semana seguinte. Precisava desligar o telefone para não atrapalhar. Quando saísse de lá, iria direto para casa, porque acordava cedo todos os dias para o trabalho.
Não sabia se ele tinha outra pessoa. Nunca perguntou. Tão diferente dela.
 
Um escreve para chegar à alma
 
Por que esta semana acabou e não recebeu nada? O remetente das cartas era de uma caixa postal. Não o conhecia. Só sabia como era através de sua própria descrição. Mesmo o nome poderia ser falso.
Tão suave e denso: invisível.
Precisava beber suas palavras, tinha fome delas e depois... Parecia bem mais seguro. Via agora que não era.
Duas semanas. Já escrevera duas vezes e não recebera resposta. Adoecera? Morrera?
Desistiu, é isso. Cansou desse monte de baboseira.
 
Outro toca no corpo e foge da alma.
 
Ligou hoje à tarde. Tinha urgência em vê-la. Disse que não, dessa vez não poderia.
Ameaçou não deixá-la em paz. Falou sentir sua falta na pele, o corpo doía com a ausência dela.
Não, reafirmou. Não queria mais. Era ilógico, mal se conheciam.
Prometeu contar tudo sobre si mesmo, mas necessitava dela.
Não outra vez.
 
Um a envolve no sonho.
 
Na carta que chegou três semanas depois, comentou em uma frase sobre um problema que tivera, mas que resolvera. Só.
Então desfiou sensações, emoções e toques sem usar as mãos.
Sentiu-se segura mais uma vez. E assustada. Não sabia da necessidade e agora se sentia a sua mercê. Precisava parar com aquilo que podia fazer tanto bem e tanto mal a ela.
Não responderia dessa vez.
 
Outro a engole em mil mãos.
 
Avisou que não ligaria mais. Se quisesse, estaria esperando que o chamasse. Tinha certeza de que o faria. Sabia que não poderia viver sem o seu corpo.
Precisava dele tanto quanto a queria.
Quanto tempo? Veremos se aguenta. Agora seria ela quem teria que ligar, procurar, querer.
Estaria esperando.
 
Um nunca toca o corpo, mas a mente está impregnada dele.
 
Outro nunca toca a mente, mas o corpo é saciado por ele.
 
Era noite e o telefone com certeza tocaria. Esperava ansiosa. Imaginava a fala rouca em seu ouvido, o toque áspero de suas mãos, a entrega. Apenas mais uma vez.
Amanhã cedo o carteiro chegaria. Já podia sentir as palavras que lamberiam seu corpo com suavidade e saciariam seus sonhos.
 
Um e outro juntos. Perfeito .

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Candida Albernaz

    [email protected]