uma realidade só sua
- Atualizado em 20/03/2020 14:22
Uma realidade só sua
Cândida Albernaz
No bar, em volta das mesas, ela dançava como se jovem fosse. Nos olhos a falta de brilho era compensada por movimentos sensuais, buscando no tempo perdido e em devaneios, momentos passados de uma juventude onde soubera ser notada. Os cabelos com tons dourados e brancos pela tintura mal feita, estavam presos em um coque de onde alguns fios se soltavam. Michele se sentia importante, não se preocupando com os risos e deboche a sua volta. Naquele momento ela era a atração principal e recebia de bom grado os aplausos e assovios. Agradecendo com as mãos para o alto e soltando beijos, esquecia do quarto imundo e escuro onde sobrevivia. Dos filhos que um dia deve ter tido, nunca mais ouviu falar. Dos netos que talvez tenham sido concebidos jamais tomou conhecimento.
Sua alegria era real, tirada do imaginário, do sonho que escolhera viver. Não importava. Ela não precisava da realidade, fazia a sua. Sentia-se repleta de sedução no corpo enrugado e encurvado pelo tempo. Não havia problema não a conhecerem ou reconhecerem pelo passado, onde fora alguém em que o tido como normal era o mais importante. Não se enganassem quanto a ser feliz ou insatisfeita. Sua loucura era escolhida e a completava. Ela hoje era tudo o que precisava.
Satisfazia-se e na sua mente reinava absoluta por onde passava, isso era o maior bem que possuía.
Talvez não tivesse sido sempre assim. De vez em quando vinham imagens que não sabia distinguir entre fatos que um dia aconteceram ou apenas um exercício de criatividade.
Como quando pensa recordar da noite em que o pai entrou no quarto e pediu que o abraçasse. As mãos dele sempre foram afáveis, mas nesse dia exigiu que as apertasse entre suas coxas. Não entendeu muito bem. Talvez ele estivesse com frio, mas aquelas mãos subiram um pouco mais e fizeram com que ela sentisse um arrepio pelo corpo. Tal qual sentia agora. Sua imaginação às vezes ia longe demais.
Teria sido casada mesmo? Em alguns momentos tinha certeza que sim, quando deitada na cama de uma clínica lhe entregaram um bebê, muito feio e murchinho. De cara, gostou dele. Principalmente quando sugou seu peito com força. Pensou lembrar a emoção que sentia a cada vez que o colocava no colo com o corpo quente contra o seu.
Onde estaria aquele bebê agora? Será que um dia fora seu realmente? Quem seria aquele jovem que costumava visitá-la e a olhava com compaixão? Talvez o menino que crescera.
O hospital onde passou boa parte da vida tinha paredes encardidas, que um dia talvez tivessem sido brancas. Esse mesmo rapaz sempre estava por lá. Parece estar vendo agora o dia em que ele chegou com uma caixa de bombons. Adorava bombons. Ficou sentado na sua frente sem falar nada, vendo-a comer todo o chocolate de uma só vez.
Algumas vezes tinha certeza de que era a mesma criança que amamentara. Seu filho com Amaro. Por que esse nome agora? Não gostava de nomes. Eles davam certeza de existência e preferia não conhecer a sua. Muito menos quando o que sobrara era solidão.
Quando recebeu alta, esse filho instalou-a em um quarto com banheiro e depois de duas ou três visitas nunca mais o viu.
Ainda parece ouvir a conversa onde ele disse que se mudaria para outra cidade. Teria sido estado? País?
Recebeu uma carta... ou quem sabe alguém veio pessoalmente contar sobre o acidente onde o rapaz perdera a vida? Falou não saber de quem se tratava. Afinal nunca tivera família. Sempre fora sozinha nesse mundo tão pequeno que cabia naquele cômodo. Desistiram de tentar convencê-la sobre uma possível criança que nascera dela.
Não conhecia ninguém e queria continuar do mesmo jeito.
Enrolou o xale bordado nos ombros e recomeçou a dançar. As pessoas a olhavam, riam e faziam comentários.
Sorriu para eles.

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