Quarentena
30/03/2020 11:23 - Atualizado em 13/05/2020 17:26
Quando eu era criança, ao meio dia da quarta-feira de Cinzas, minha avó, mãe do meu pai, iniciava seu ostracismo de quaresma. Durante os quarenta dias que antecediam o Domingo de Ramos, ela se recolhia em casa, prendia os cabelos, se desnudava de qualquer vaidade usando uma túnica roxa horrorosa. Maria não fazia quase nada além de rezar e preparar as refeições da família, sem carne – extremamente proibida durante o chamado jejum da quarentena. A casa não arrumava, o chão não varria.O bordado postergava. Doces não comia. Qualquer forma de prazer, mesmo que mínima, era completamente condenada. Tudo isso em penitência Cristã. Uma espera de quarenta dias para livrar o corpo dos pecados mundanos devidamente bem compensada com os ovos e chocolates de Páscoa.
Até hoje, algumas igrejas de cidades muito católicas, como São João Del Rey e Tiradentes, cobrem seus pisos com flores de alfazema deixando um perfume hipnótico que atrai até pagãos – como eu. Segundo a tradição, a alfazema perfuma a igreja disfarçando o cheiro ruim da falta de limpeza e afasta as traças e baratas. 
Esses dias, conversando com minha mãe sobre a reclusão imposta pelo Covid-19, recebo dela a pergunta “Até quando vai durar esta quarentena?”.Minha mãe estava completamente agoniada com as incertezas do futuro – como se futuro houvesse certeza alguma - e da extensão desta quarentena que poderia durar bem mais do que quarenta dias.
"Quando voltaremos a ter uma vida normal?"
Em quase duas semanas de reclusão pego-me a pensar se realmente desejo voltar à vida “normal” que tinha. Enquanto empresários mostram suas garras selvagens destilando prognósticos de “5.000, 7.000 ou 12.000 velhinhos mortos”, moradores da Baixada Santista enxergam um céu azul não visto na cidade desde a década de 70. No céu de Santos ressurgiu aos olhos dos moradores, um aglomerado de estrelas Ômega Centauri, antes cobertas pelo céu marrom da polução. É para essa vida normal que queremos retornar?
É este o país que não pode parar?
João Guimarães Rosa escreveu: “A traça não pode com a alfazema.” Sejamos então as flores que combaterão o vírus da intolerância, do individualismo, e do capitalismo exacerbado e inconsequente que nos move em alta velocidade rumo ao fim do mundo.

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    Mariana Luiza

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