O efeito coronavírus em nós, brasileiros
- Atualizado em 27/03/2020 19:42
Texto de Judith Esther Farias
Texto de Judith Esther Farias
Ontem completou um mês desde o primeiro caso de coronavírus no Brasil. A partir de então, em meio ao massificado apelo midiático para que fiquemos em casa, brotam estudos comparativos entre o primeiro mês de contágio na China, nos EUA e na Itália. E a matemática e a estatística são trazidas para causar espanto nos brasileiros. Se, nos primeiros trinta dias, nos EUA e na Itália, os números de infectados e vítimas fatais eram menores que no Brasil, a “lógica” dos fatos nos assustam. Há quem fala que, em junho, somaremos mais de 80 mil infectados no Brasil e milhares de morte.
O Governo Federal – também ontem – ao entrar da noite, delonga discussões presenciais e remotas na Câmara dos Deputados para se conciliarem quanto ao valor do auxílio a ser transferido aos trabalhadores informais e autônomos, numa tentativa de “amparo social”, sob o rótulo de “renda básica emergencial”. Chega-se ao valor de R$ 600,00 por trabalhador, limitando o auxílio a dois trabalhadores por residência e duplicando o valor em caso de mulher sendo chefe de família. E ainda pende aprovação no Senado. E ainda pende que o Ministério da Economia defina o meio pelo qual este auxílio chegará aos desamparados.
Enquanto isso, os estados-membros e municípios se voltam para o local e definem regras e mecanismos de enfrentamento do efeito COVID-19 sem o norte ou diretriz da União. Salvem-se quem puder e como puder. Na espera de suspensão dos pagamentos de suas dívidas à União, os estados recorrem judicialmente, ao STF, para ver decretado aquilo sobre o que a União ainda não se posicionou. E não se posiciona. A verdadeira descentralização do Poder impera, de modo desconcentrado.
No Brasil, estamos acostumados com o tardio, com o “jeitinho”, com “o que dá”. A velha dicotomia que nos impõe escolhas, soa um tanto quanto um refrescante véu que acoberta as falhas e omissões estatais; de um Estado pesado, embora jovem, e que se arrasta por engatinhar calejado, relutante aos primeiros passos. Os cidadãos se dividem, se fragmentam ao invés de se unirem. Grupos e lados são criados por seus fervorosos adeptos. Há os que defendem ou não o governo. Há os que ficam em casa e os que querem ir para a rua. Há os que querem Saúde e há os que querem salvar a Economia. E, de grupo em grupo, de fração em fração, cada vez mais se liquefaz o tempo. Tempo que, neste momento, não é nosso aliado e não pertence exclusivamente a um destes grupos.
O coronavírus – ou o efeito coronavírus (ou os dois) – está em nossas portas. Não está somente nas ruas, nas escolas, na via pública. De qualquer forma, bate em nossas portas. Por mais isolados que estejamos, por mais assepsia que fizermos, por mais planos de saúde, por mais dinheiro. Estamos em pé de igualdade. Independe nossa condição social, nossa raça, nosso credo. O problema, mais que social, é público. É de todos.
Não há como negar o fenômeno. Um fenômeno que atormenta, amedronta, que causa prejuízos, sejam de que ordem for. Não há como, também, saná-lo, remediá-lo (não por enquanto): não temos o condão de assim fazer. Resta – mas não pelo sentido pejorativo do verbo restar – administrar os conflitos que o fenômeno gera. Clamamos por interação, por junção, por união. Mesmo que seja no “micro”. Mesmo que seja de nós mesmos em conversa com nossas famílias e alguns bons amigos. Precisamos ficar em casa e espalhar, não o vírus, mas uma interação, nos darmos voz. Fazer nossa parte. Cabe a nós. Como pensar no coletivo se não começamos de uma tomada de consciência individual?
Os conflitos que existem e – mais uma vez – não deixarão de existir. E a administração destes encontram certos empecilhos no nosso amado Brasil. Não estamos todos acostumados com a ideia de que o “público” é do público e não do Estado. A nossa democracia, muitas vezes, se limita a ir às urnas ou aos estádios de futebol. Até vestir uma camisa ou acessório com as cores do Brasil, fora destas datas, é démodé para muitos. Não sobra muito espaço para a vontade do povo.
O meu “ficar em casa”, o seu “ganha-pão”, a saúde dos meus, o desemprego dos outros. Como não nos fragmentar e como unir e investir, em nós, a cidadania, fazer valer nossos direitos fundamentais e exigir do Estado o papel de mantenedor da ordem social em meio a este caos? Um caos de precedentes certos e futuro incerto. Curto, longínquo, catastrófico, duradouro. Não sabemos. Mas também, não podemos nos tolher nas incertezas e tirar delas um porto seguro do “não faço nada porque nada dará certo”.
Antes de escrever este artigo, ontem à noite, conversei, por videoconferência, com amigos. E refletimos: como sobrepujar o interesse coletivo numa sociedade – ou mundo – tão individualista? Qual seria a panaceia. E, no nosso caso específico, como sairmos e como sairemos do efeito COVID-19? Não há espaços para suposições. Não há espaço para imposições. Parafraseando Manoel de Barros, um deles nos disse em resposta às várias modulações de nossas inquietações reveladas: “cuide do seu próprio quintal; comece por ai.”
De certo, se pensarmos que o “nosso quintal é maior que o mundo”, se quisermos que nossa “voz tivesse um formato de um canto” – como disse o poeta – e que é no nosso espaço, no nosso “micro”, e a conta-gotas, que o “macro” se solidifica, podemos – não só sair – mas verdadeiramente “estar” neste momento em que nos aprisionamos em nós mesmos sem saber o tempo da “progressão de regime” e fazendo a nossa parte.
Adianta, sim, fazer nossas partes. Como as rendeiras, tecer, tecer e tecer. E não cansar. E sem esmaecer. E, durante este período, extrairmos de nós, nossos guerreiros, vencendo nosso próprio inimigo interno, encarando-o e dizendo que nos explorarmos e nos exigirmos tanto, dia pós dia, não nos fortalece e que, aliados ao tempo, nos realizaremos de outros modos. Mais altruístas. Preocupados com o rumo que estamos dando ao planeta, às relações interpessoais, àquilo que não nos atinge, à dor dos outros. Preocupados em consumirmos menos bens materiais e fungíveis, que, tão só, nos proporcionam prazeres momentâneos. E, acordados e vivos, estejamos instigados a nos nutrir do que realmente importa. Do que não comporta etiquetas, último modelo ou previews.
Se, numa visão econômica, somente uma crise produz mudança real, por que não começar por nós mesmos?
Texto de Judith Esther Farias, advogada e presidente do Conselho Comunitário de Segurança Pública em Campos dos Goytacazes.

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    Roberto Uchôa

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