Semiótica da Escravidão
19/01/2020 20:02 - Atualizado em 13/05/2020 17:52
Em 2017, fiz uma viagem à Valença durante as festas do quilombo São José. Foi meu namorado quem organizou a viagem e reservou o hotel: uma antiga estalagem colonial. Chegamos de madrugada, o estacionamento lotado. Depois do check-in, caminhamos, num silêncio sepulcral, por um largo corredor de numerosas portas e janelas de peroba de rigor simétrico típico da arquitetura das fazendas de café. Na manhã seguinte, a euforia das crianças misturadas ao som de talheres e copos de vidro nos indicava o local do café da manhã. Um salão quadrado, com 20 metros de largura, e um pé direito de 6 metros, cuja parede lateral, bem ao lado da porta de entrada, adornava um imenso painel fotográfico com 120 metros quadrados de extensão.
Ao fundo da fotografia, ainda em foco, o casarão, ao qual habitávamos. Poucos metros à frente, em destaque, o barão e sua senhora sentados num banco de madeira, debaixo do abano de um leque de plumas agitado por mãos negras. Ao chão, duas crianças brancas brincavam enquanto a ama de leite observava atenta. Do lado direito da fotografia, um grupo de dezenas de escravizados trabalhavam na lavoura de café debaixo de um calor escaldante que eu poderia sentir mesmo dentro daquele salão devidamente climatizado.
Aquela foto era um dos signos do inferno. 
Debaixo da imagem dos escravizados, próximo a porta de entrada do salão, uma pequena fila de hóspedes se formava: uma mulher com duas crianças pequenas, um casal de namorados e uma senhora aposentada aguardavam a vez de serem fotografados ao lado da família do Barão. O registro da imortalidade era feito pelo único negro vivo, além de mim, naquele ambiente: o garçom. Das inúmeras iconografias que já vi sobre a escravidão no Brasil nada me impressionou tanto quanto aquela. Não era apenas o tamanho da reprodução, nem a proximidade geográfica e temporal do objeto retratado. Mas tudo isso, somado à violência simbólica de um país que se representa ao lado dos barões.
Três anos depois daquele episódio em Valença, estava eu, numa fila de cinema, assistindo ao vídeo em que Roberto Alvim parafraseava um discurso do ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels. A estética e semiótica nazista já não usavam disfarces num governo que sempre flertou com o regime desde a época da campanha eleitoral. Mas será mesmo que Bolsonaro e seus asseclas, algum dia, precisaram ou tiveram ao menos a intensão de dissimular tamanha proximidade ideológica e simbólica?
Desde a campanha eleitoral, os preceitos da Propaganda Nazista foram adequados à nossa realidade e disparados por robôs que invadiram milhares de celulares brasileiros. A imprensa, o congresso, a justiça eleitoral, todos nós, sabíamos que o crime cometido pelo PSL era suficiente para impugnar a campanha. Mas nada foi feito. Quando ainda era candidato, Bolsonaro e seu vice proferiram inúmeras declarações que demonstravam o apreço pelas teorias de darwinismo social e hierarquia racial, o cerne do ideial da superioridade ariana.
"Mourão tem um neto bonito devido ao branqueamento da raça."
"Os quilombolas são animais sem utilidade nem para procriação."
"Herdamos a indolência dos indígenas e a malandragem dos negros."
Nem o presidente, muito menos seu vice se sentiram ameaçados pelo crime inafiançável e imprescritível que cometeram.
Bolsonaro, em entrevista ao Roda Viva, chegou a questionar a dívida histórica do país com os 400 anos de escravidão seguidos de um epistemicídio e genocídio ainda vigente.
Mourão foi além, fez uma homenagem em seu Twitter ao sistema das capitanias hereditárias, que dividiu este país, de dimensões continentais, em 15 partes para apenas 12 famílias. Uma concessão passada de pai para filho, onde os donos nem sequer calejavam as mãos lavrando as terras, tampouco pagavam salários aos trabalhadores. É isso que o vice presidente chama em seu Twitter de EMPREENDEDORISMO. Mourão termina o post com a seguinte frase "é hora de resgatar a melhor de nossas origens". Reafirmando a política genocida de governo para o qual foi eleito. A violência física e simbólica que forjou a nação brasileira há mais de 500 anos está mais do que vigente e presente neste desgoverno atual. Seja no genocídio dos povos indígenas do centro-oeste e Amazônia, na derrubada das florestas para a exploração completa de suas capitanias, ou no programa de segurança do Ministro Sérgio Moro.
O presidente e o vice se sentem confortáveis em fazer tais declarações, sem medo algum de punição. Tampouco se incomoda o dono do hotel que deve achar bonito decorar seu salão com um retrato de um dos crimes mais devastadores contra a humanidade. Tal conforto ainda perdura na postura do casal de namorados, da mãe com seus filhos, da senhora idosa que posam ao lado de criminosos. Será que a foto também vai pro Twitter?
O racismo não é crime nem uma ameaça em um país que ainda romantiza 400 anos escravidão reproduzindo a violência e o holocausto de mais de 5 milhões de africanos em cartões postais, artigos de decoração e painéis ornamentais nos refeitórios de hotéis coloniais.
Nós não reconhecemos nossa história. Não tratamos das nossas feridas. E reproduzimos sem questionar os signos do nefasto regime colonial. Mas parafraseando a manchete da Folha de São Paulo, do dia 17 de Janeiro, “Citação nazista na cultura e agenda econômica não se misturam, dizem analistas” e a bolsa de valores subiu 1,5% se aproximando de mais um recorde histórico.
O governo de Bolsonaro, apesar de ser o que é, se faz necessário para que Guedes possa, com calma, executar seu plano econômico de prosperidade para os somente 12 capitães hereditários.
Eu poderia passar o dia justificando minha tese de que o presidente nunca disfarçou suas ideologias sanguinárias. A estética nazista se faz presente neste governo desde uma simples ida ao barbeiro para cortar os cabelos penteados para o mesmo lado de uma famosa foto do führer, até no slogan nacionalista “Brasil acima de tudo”.
Nada é gratuito. E nem sempre é sutil.
Inúmeras vezes Bolsonaro e sua turma escancararam a semiótica nazista em seus discursos e atitudes. Os signos da superioridade de raça estão presente até mesmo nos silêncios, nos abandonos das entrevistas. Nas perguntas sem respostas:
Quem mandou matar Marielle Franco?
Mas como diz nossa suposta futura secretária da pasta de cultura essas semelhâncias simbólicas são bobagens. Bolsonaro é um homem doce, com bom coração, que faz brincadeiras homofóbicas e racistas apenas da boca pra fora.

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    Mariana Luiza

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