se tiver alguma luz acesa, sento na varanda
- Atualizado em 21/11/2019 08:04
Se tiver alguma luz acesa, sento na varanda.
Cândida Albernaz
O lugar que escolhi para sentar está escuro. O copo à minha frente ficou cheio do líquido transparente por diversas vezes. O bar está quase vazio. Só eu e mais um casal que discute sem parar. Não vejo a graça que algumas pessoas têm de saírem juntas para olhar cada uma para um lado diferente da outra ou para brigarem. Se não têm o que dizer, deveriam ficar em casa ou ir ao cinema.
Estou aqui desde a hora em que o bar abriu. O garçom veio perguntar por três vezes se queria algo para comer: “estou sem fome. Só mais uma purinha, por favor”. Já nem vem mais à mesa, resolveu me deixar de lado. Talvez se preocupe por beber tanto e tenho que insistir para que sirva. Sou resistente, mas ele não sabe. Escolhi este lugar, num bairro distante de casa, porque aqui não sou conhecido.
Não gosto de solidão, até temo. Mas precisei: não tive escolha.
Na noite passada, eu e Sílvia discutimos pela enésima vez e ela pediu que saísse de casa. Argumentei, gritei e quase a agredi. No final, resolvemos que eu dormiria e iria embora pela manhã. Não sabia para onde, e ainda não sei.
Durante a discussão os meninos acordaram assustados e eu mandei que voltassem para a cama. Tiago, de quatro anos, começou a chorar. Sílvia olhou-me com ódio e foi com eles até o quarto. Pela porta entreaberta pude ver que ela passava a mão pelos cabelos dele enquanto cantava baixinho uma dessas canções de ninar. Esse quadro sempre me emocionou: Sílvia e nossos filhos. Os olhos dela mudam quando está com os dois. Entrega-se como nunca se entregou a mim. Costuma dizer que são crianças e precisam dela, e eu, homem crescido, já com escolhas na vida, não necessito.
Esse foi o ponto chave: escolhas. Ela afirma que tive oportunidades para fazê-las. Eu respondo que não é bem assim. O jogo e a bebida foram entrando aos poucos no meu cotidiano e com o tempo não consegui desvencilhar.
Na última semana, perdi o carro numa rodada. Só contei ontem, depois de beber muito e chegar a casa querendo saber o que ela fez, onde esteve e com quem. Durante as perguntas me olhava com pena, aliás, esta é a forma com que me olha ultimamente. Até que falei no carro, que não estava na oficina coisa nenhuma, que havia perdido no jogo, que se ela pensava que ia ter o carro de volta para ficar na vadiagem, se enganava e que eu não havia nascido para corno.
O olhar que ela mantinha fixo em mim mudou: tornou-se frio.
Arrependi na mesma hora das coisas que falava quando estava de porre, das acusações, do jogo que não conseguia largar, apesar dos inúmeros pedidos dela, da bebida que por muitas vezes fez com que dormisse nas horas mais importantes nossa e de nossos filhos.
Ela não escutava mais. Falava pausadamente: “... para que não tenha dúvidas sobre o que quero. Se você não sair, vou com as crianças para a casa de meus pais. Entro com uma separação litigiosa e provo para o juiz a sua incapacidade de estar com os meninos. Vai ter hora marcada para vê-los”.
Não entendeu que não foi pelos filhos, mas por ela, que resolvi sair hoje de manhã. Os pais moravam a mil quilômetros daqui e eu não poderia olhá-la quando necessitasse.
Enrolei para ir embora, mas quando a vi sair do quarto das crianças, tive certeza de que não havia mudado de ideia. Coloquei algumas peças de roupa numa bolsa e fui.
A essa hora, eles estão se preparando para deitar. É noite outra vez. O que será que ela disse aos meninos? Apesar de que, não seria a primeira vez que não volto para casa. Não estranhariam minha ausência ainda.
Sinto que não há retorno. Nunca havia visto tanta firmeza ao falar e nem a falta de amor que pude enxergar agora. Não me queria mais, percebi.
O bar vai fechar. Não resolvi aonde ir. Talvez caminhe até em casa e pare em frente ao portão. Se tiver alguma luz acesa, sento na varanda até que se apague. Então decido o que fazer.

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".