País, mundo e Campos por Marina
Marina Silva
Marina Silva / [email protected]
Nas três primeiras décadas do séc. XX Campos dos Goytacazes viveu um ciclo de prosperidade, trazido pelas riquezas produzidas pelo setor açucareiro. De grande extensão territorial e pujança econômica, o município polarizava a região Norte Fluminense, que levava o Estado do Rio de Janeiro, com mais de 27 usinas em produção, a ocupar a segunda posição entre os maiores produtores de açúcar do Brasil, atrás apenas de Pernambuco. O “ouro branco” trazia desenvolvimento. Nos anos 40, o Norte Fluminense acaba perdendo sua posição de destaque para São Paulo. Em 1967, o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) fixa como escala mínima de produção 200 mil sacos de açúcar para cada usina brasileira. Sem os investimentos necessários, muitas usinas fecham suas portas no Rio, restando a região agrária de Campos como um núcleo de produção açucareira.
Segundo o IBGE, Campos possui uma população de 507.000 pessoas e ocupa a 1.427ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) de 2010, que leva em consideração renda, longevidade e educação dos munícipes. Com a descoberta de petróleo na Bacia de Campos, o “ouro branco” deu lugar ao “ouro negro”. Os royalties, compensações pagas aos municípios produtores, injetou grandes volumes de dinheiro, porém, não deixou legados significativos para o desenvolvimento sustentável de Campos e região, como, por exemplo, a criação de um fundo para atravessar momentos de crise. E a crise se instalou. O Supremo Tribunal Federal (STF) marcou para o próximo dia 20 de novembro o julgamento da constitucionalidade da Lei 12.734/2012, que determina novas regras de partilha dos royalties do petróleo, com efeito retroativo a 2013, quando a norma foi sancionada. A alteração no modelo de partilha atual resultaria numa perda de receita estimada em R$ 56 bilhões até 2023. Como cabe retroatividade, o município de Campos poderá ser obrigado a devolver ainda cerca de R$ 2,6 bilhões.
Sobre esses e outros assuntos, ouvimos a presidenciável Marina Silva. Historiadora, professora, psicopedagoga e ambientalista, Marina se tornou uma autoridade mundial quando o assunto é meio ambiente. Na entrevista, ela fala sobre as alternativas ao petróleo, política ambiental nacional e as posições de seu partido, Rede Sustentabilidade, em Campos.
Folha da Manhã – Campos dos Goytacazes já teve mais de 30 usinas de cana-de-açúcar. O chamado “ouro branco” movimentou a planície goitacá, trazendo um grande volume de recursos. Atualmente temos três em atividade [Sapu-caia (Coagro), Tocos e Canabrava]. Qual alternativa socioambiental à produção de petróleo para se retomar uma produção em larga escala?
Marina Silva – Não conheço a situação específica de Campos e vou falar em tese. A mudança da matriz energética é conceitualmente ampla. A geração de energia elétrica e a mobilidade vão sair da dependência dos combustíveis fós-seis com o desenvolvimento tecnológico em várias áreas. Não se trata apenas de substituir um combustível por outro. A energia solar, a eólica, os carros elétricos, que usam biocombustíveis e hidrogênio, são as inovações conhecidas. O programa do álcool merece apoio, sem dúvida, pois tem um papel na redução das emissões de gás carbônico. Mas deve ser combinado com a pesquisa e a inovação também na agricultura, pois as monoculturas sempre empobrecem a biodiversidade e o ideal é buscar formas de produção agrícola que favoreçam a manutenção da biodiversidade e as oportunidades de produção bem distribuídas entre os produtores rurais de vários portes.

Folha – Muito se critica a monocultura. Porém, temos mais de 200 mil hectares de terras agricultáveis, já desmatadas, que outrora eram utilizadas para a cultura de cana-de-açúcar. Como utilizar essa área com as novas diretrizes ambientais, destinando 20% para formação de floresta? Voltar a produzir com tecnologia e realizando contenção de encostas, não seria mais interessante para o meio ambiente do que esses 200 mil ha inativos?
Marina – Claro. Essa inatividade não serve a ninguém. Sempre defendi que houvesse financiamento dos bancos públicos para recuperação de terras degradadas e improdutivas, pois o sistema financeiro brasileiro e a própria legislação sempre financiaram o desmatamento. É importante recuperar a reserva ambiental das propriedades, as matas ciliares dos cursos d’água e usar as técnicas recomendadas para proteção do solo, sem dúvida. Com certeza é melhor recuperar o solo das áreas já desmatadas do que ampliar o desmatamento. No Brasil, segundo dados do ministério do Meio Ambiente, temos 35 milhões de pessoas vivendo nos 1,34 milhão de quilômetros quadrados de áreas suscetíveis de desertificação. E já temos as tecnologias adequadas para recuperar essas áreas: plantio misto, sistemas agroflorestais, agroecologia, são muitas as possibilidades. Mas é preciso atenção e investimento.

Folha – Campos viveu por muito tempo com recursos da arrecadação de impostos gerados pela produção de açúcar, que muitos dizem ser maior que a dos royalties do petróleo por muito tempo. Regiões como São Paulo, Acre, Goiás e Sul têm usinas de cana-de-açúcar. A monocultura da cana prejudica? Existem alternativas?
Marina – A história econômica do nosso país se fez, em grande parte, de monoculturas. Desde as plantações de cana no Nordeste às fazendas de café em Minas e São Paulo, uma riqueza enorme foi gerada. A II Guerra Mundial teve enorme contribuição de apenas um produto da Amazônia, a borracha, ainda que tenha sido produto extrativista. Mas estamos no século XXI, em meio aos avanços da tecnologia, novas fontes de energia, novos arranjos econômicos e, principalmente, diante de uma crise ambiental que está gerando uma grande mudança climática. Devemos fazer um esforço para desenvolver de forma sustentável todas as formas e possibilidades de geração de riqueza. Creio que há uma recuperação possível para a produção de açúcar, que poderia beneficiar Campos e outras regiões que já foram prósperas e produtivas, mas não recomendo que voltemos a ser dependentes de apenas um produto. O futuro está na diversificação.

Folha – O presidente Jair Bolsonaro discursou na ONU (debates gerais da 74ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 24 de setembro) falando que o Brasil estava “à beira do socialismo”. Ele parece desconhecer os conceitos clássicos do socialismo, doutrina político-econômica baseada na igualdade e no controle dos meios de produção, diminuindo — ou extinguindo — as diferenças de classe. Embora tenha grande importância acadêmica, estudiosos defendem que o socialismo não foi experimentado, de fato, no mundo. A Rede se propõe socialista, ou pelo me-nos próximo a conceitos socialistas?
Marina – Muitas vezes as lideranças políticas fazem discursos destinados a gerar e disseminar sentimentos que convêm aos seus interesses. A criação de situações de medo e a demonização das opiniões dos adversários são estratégias que não têm ética, mas que têm grande poder para jogar milhões de pessoas contra outras. Um presidente da República não deveria agir assim, mas, infelizmente, é o que tem acontecido. A Rede Sustentabilidade procura dialogar com todas as correntes políticas numa postura de respeito. Temos uma visão política alinhada com a teoria do pensa-mento complexo, de Edgar Morin e outros pensadores contemporâneos. Entendemos que a realidade não é bipartida ou polarizada em dois blocos direita/esquerda. E a Sustentabilidade, certamente, atravessa a divisão clássica de classes e setores sociais. Todos precisam de ar puro, água limpa, solo fértil. A sustentabilidade econômica só existe se houver distribuição equânime de riquezas, a cultura precisa ser diversa e respeitada em suas várias identidades para que haja trocas e evolução. Todas essas coisas dependem de uma política ética e democrática. Como você vê, não é possível enquadrar a visão política da Rede em padrões criados no século XIX. As utopias daquela época são importantes, mas hoje já não conseguem responder à complexidade do mundo.

Folha – A política deve necessariamente tratar das questões ambientais, visto as necessidades de produção de alimentos e impactos no clima da ação humana. Porém, sem alterações de formas de consumo e modos de vida, não conseguiremos promover respeito ao meio ambiente. O Brasil deve se posicionar como o dito “pulmão do mundo”? Discursos emocionados como da Greta Thunberg [sueca de 16 anos que discursou na abertura da Cúpula do Clima, na sede das Nações Unidas em 23 de setembro] são muito interessantes, mas não reforçam a imagem de ecologistas carica-tos? A luta não deveria ser mais pragmática?
Marina – O Brasil e particularmente a Amazônia prestam serviços ambientais muito relevantes ao clima do planeta. Mas também é relevante para a produção de chuvas e, por consequência, à produção de alimentos. Quem não vê razões éticas e ecológicas para conservar o meio ambiente deveria ao menos ter o bom senso de aceitar as evidências científicas. A atuação da Greta, uma jovem que se preocupa com risco de extinção da vida em nosso planeta, é legítima e traz uma esperança. Venho falando há 30 anos: as pessoas têm que tomar a defesa do meio ambiente em suas mãos, não podem deixar só a cargo de governos e empresas. Espero que nesta nova geração, que sente seu futuro já comprometido, muitas outras Gretas surjam para nos lembrar das nossas responsabilidades.

Folha – Voltando a Campos e ao Rio, temos um grande recurso natural que é o rio Paraíba do Sul. Um amplo projeto de irrigação, com tecnologia e apoio de órgãos como a Embrapa, seria essencial para o desenvolvimento da região ou os impactos ambientais serão mais danosos que os resultados econômicos?
Marina – Tem que se fazer os estudos de impacto ambiental, não se pode ser a favor ou contra sem informações confiáveis. É claro que o uso da água exige cuidados. Além do uso doméstico, temos a produção agrícola, a indústria, às vezes, até serviços como o turismo, tudo depende de água. Um tipo de uso tem que ser equilibrado para não causar prejuízo aos outros nem custos adicionais à sociedade ou prejuízos à saúde pública. Mas a legislação brasileira já prevê as medidas mitigadoras de impacto e vários outros instrumentos de gestão. É importante conhecê-los e considerá-los. Qualquer projeto com essa magnitude, além dos aspectos econômicos, precisa levar em conta também se há viabilidade social e ambiental.

Folha – O partido Rede Sustentabilidade irá participar ativamente das eleições municipais?
Marina – A Rede vai fazer o maior esforço possível para superar a cláusula de barreira. A estratégia para cumprir essa diretriz nacional será definida em cada estado. Estamos estimulando todos os elos estaduais a fazerem um esforço para, mantendo nossa coerência política e programática, ter candidatos competitivos no maior número de municípios.

Folha – Em Campos, alguma definição partidária já foi decidida?
Marina – A Rede tem um sistema horizontal de decisões, nada é decidido “de cima pra baixo”. As decisões em cada estado e seus respectivos municípios devem passar por amplos debates promovidos pela direção estadual. Como o município de Campos é bastante importante no Estado do Rio, certamente a direção estadual dará atenção grande à eleição de representantes da Rede para a Câmara Municipal dessa cidade.

Folha – A Rede apoiou o atual prefeito, Rafael Diniz [Cidadania], tendo o vereador Marcão [atual PL] como mais votado pela Rede. Após a vitória, o partido se queixa de abandono. Existe demanda judicial que requer o mandado de volta ao partido por infidelidade partidária. Dados os desafios ambientais e econômicos ligados ao agronegócio, Campos deve-ria ter uma representação da Rede mais forte e mais atuante?
Marina – A Rede tem um estatuto que regula essa relação entre o mandato parlamentar e o partido. Ao assinar a ficha de filiação, cada um aceita as regras estatutárias. A direção estadual de cada unidade da Federação tem autoridade para buscar o cumprimento dos dispositivos estatutários. Quanto à representação no município de Campos, ou em qualquer outro, depende da dinâmica social e política local. Nossa representação será tanto mais forte quanto for a atuação do partido e sua organização no nível local, nos diversos segmentos sociais e comunidades.

Folha – Existe a possibilidade de candidatura própria em Campos ou outra cidade de região?
Marina – Essas discussões estão sendo feitas pelo Elo Estadual RJ e serão reportadas à Executiva Nacional ao longo do processo eleitoral. A legislação eleitoral para 2020 permite coligações apenas para as candidaturas majoritárias, as candidaturas proporcionais não terão chapas coligadas. Assim, nossa direção no Estado fará as construções que mais contemplem o programa e a visão política da Rede.

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    Edmundo Siqueira

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