O flamengo de Jorge Jesus: a plasticidade do Português que gosta do Brasil
24/10/2019 22:56 - Atualizado em 24/10/2019 23:51
Jorge Jesus
Gilberto Freyre
Gilberto Freyre
 
 
 
 
 
O sucesso do trabalho de Jorge Jesus no flamengo tem alimentado discussões sobre a relação do Brasil com a Europa no futebol. Na imprensa e na opinião pública esportiva, o interessante é que a discussão não deixa espaço para posturas mais chauvinistas de reserva de mercado, como alguns poucos comentaristas ensaiaram na abrupta chegada do treinador português ao flamengo. Obviamente, são os resultados espetaculares nas duas principais competições disputadas pelo clube em 2019 que não deixam margem para nenhum tipo de nacionalismo tosco. O debate gira em torno do significado deste sucesso para o futebol brasileiro, sua relação com a Europa e seu lugar no futebol mundial. O flamengo de Jorge Jesus nos trouxe o direito de pensar que a distância financeira e infraestrutural entre o futebol brasileiro e o europeu ainda nos deixa margem significa de mudança conceitual e organizacional, capaz de fazer o “experimento do flamengo” se difundir como paradigma de um jeito de jogar novo e melhor.
No entanto, o encanto com o treinador português também lembra o repertório cultural do português plástico de Gilberto Freyre que gosta do Brasil e acredita em construir civilização moderna nos trópicos. Para Freyre, o orgulho nacional brasileiro é multicultural desde sempre e sua base é exatamente um tipo particular de gente vinda de Portugal. Um português rude, plebeu, do interior, sem muitas chances na Europa, e que se volta para o “novo mundo nos trópicos” como aposta de construção pessoal, social, cultural e política, buscando aproveitar as vantagens comparativas do ambiente tropical para dar “saltos civilizatórios” que não poderia realizar no “velho mundo”. O brasileiro de Freyre, não muito distinto do de Darcy Ribeiro, é resultado não só do multiculturalismo, mas também da abertura para soluções novas. O potencial da plasticidade portuguesa não é apenas na relação e na mistura com outros povos e culturas, mas também em absorver e adaptar técnicas destes povos e culturas.
Na construção e no sucesso do futebol brasileiro estes dois elementos da plasticidade portuguesa sempre estiveram presentes. No “novo mundo” criado no Brasil, a globalização nunca precisou ser negada em favor da afirmação nacional, principalmente porque o elemento europeu em nossa cultura nunca foi “puramente europeu”. A perspectiva de nosso elemento colonizador mais importante sempre foi uma perspectiva desvalorizada na Europa temperada. Além disso, o português plástico que gosta do Brasil e acredita na qualidade do que faz nos trópicos é um português de “segunda classe” para as relações de Portugal com o restante da Europa. São plebeus, e não nobres. Assim os descreve Freyre:
“Resta-me ainda alguma coisa a dizer quanto ao que deve o Brasil aos homens do campo, rústicos ou analfabetos, de Portugal. Desde os primeiros dias do século XVI foram eles o elemento básico para o desenvolvimento, na América Portuguesa, de uma nova e vigorosa cultura, não meramente subeuropeia ou colonial, porém, brasileira. (…) E estes rústicos – poderíamos salientar – e não os nobres, os burgueses, os finamente educados, é que, através, de séculos, vêm sendo a flor ou a nata da colonização portuguesa no Brasil” (Gilberto Freyre. Novo mundo nos trópicos. Editora Univercidade, 2000 , p. 83)
Ao contrário de Mourinho, um treinador com estilo pessoal e capital cultural para a Europa temperada, poliglota e adepto de um multiculturalismo elitista, Jorge Jesus é um representante proletário do português rude do interior, com um multiculturalismo tropical e popular de quem mal fala o inglês. Em 2010, no auge da última grave crise financeira de seu país, perdeu todas suas economias com a falência do Banco Privado Português.
Voltado para o aperfeiçoamento técnico e tático de suas equipes, Jorge Jesus parece dar novo impulso de adaptação de técnicas europeias para torná-las eficientes nos trópicos. Sua ambição parece claríssima: conquistar aqui o que não pôde ou poderia conquistar no velho continente. E já deixou claro que não vê seu padrão de jogo como estranho ao Brasil, mas como uma espécie de recuperação de nossa melhor tradição de futebol bonito e eficiente. A comparação do flamengo com bons times da Inglaterra já não parece tão absurda.
A ambição de Jorge Jesus é a do português plástico que gosta do Brasil e que aposta em realizar aqui o melhor de seu trabalho. Assim como o de muitos portugueses descritos por Freyre, obrigados a cultivar uma relação de adesão e distanciamento em relação aos padrões europeus, o destino do “mister” parece estar ligado a seu desembarque nos trópicos. Seu sucesso não será o sucesso da Europa no Brasil, mas sim o sucesso do Brasil enquanto “novo mundo” formado mais por plebeus do que nobres vindos de Portugal. Será o sucesso de uma cultura plebeia aberta ao “estrangeiro” e ao aperfeiçoamento técnico que o contato entre “estrangeiros” e “nativos” pode trazer.  O sucesso da cultura brasileira.

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    Roberto Dutra

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