ainda presa num retrato
- Atualizado em 17/10/2019 00:10
Ainda presa num retrato
Cândida Albernaz
Estou presa neste retrato em preto e branco já amarelado pelo tempo.
Daqui vejo você e o mundo acontecendo. Não lembro mais como foi que me aprisionei. Essa pessoa que não emite som ou demonstra sentimento.
Talvez tenha sido por você que vim parar aqui. Talvez tenha sido você quem me escravizou.
O tempo esfarela enquanto eu prisioneira de uma vontade não envelheço, mas também não vivo.
Ainda lembro o dia em que a foto foi tirada e também de quando a colocou numa gaveta para não mais olhar.
Até entendo o motivo por não querer me ver, mas através de um retrato não posso fazer-lhe mal. Ou são as recordações que ainda o afetam?
A vida quis assim, poderia dizer, mas não seria verdade. Foi minha opção o que aconteceu.
Quando tivemos Carlinhos, achei que o mundo era nosso e que nada poderia estragar o que vivíamos. Sempre foi um ótimo pai e por várias vezes mais completo do que eu como mãe.
Nos pesadelos de nosso filho, antes que eu pensasse em levantar, você estava ao lado dele, acalentando e fazendo com que dormisse outra vez.
Na vacinas ou doenças infantis era você quem o acompanhava e mesmo que insistisse em estar junto, me sentia excluída e desnecessária. No fundo, penso hoje, acomodei deixando que fosse mãe e pai ao mesmo tempo, enquanto eu mera espectadora.
Paguei pela minha imaturidade. Quando nos separamos, ele não titubeou: quis ficar com você. Também não briguei pelo contrário, achava justo que fosse assim. Injusto só para mim.
Nunca me perdoou quando avisei que ia embora e pensei que com isso, você fosse me perceber. Ao inverso, olhou-me com sua frieza habitual e disse que estaria no escritório. Só exigiu que fosse sem ele: Carlinhos fica! Obedeci, é claro.
Não saí de casa para viver sozinha. Em pouco tempo eu e Marcos morávamos juntos. Quando soube, tenho a impressão de que não sentiu nada, não é de seu feitio.
Jamais fui impedida de ver nosso filho quando quisesse, mas foram poucas as vezes em que esteve por perto.
Até hoje, não sei de verdade se sentiu minha perda ou se teve ódio por estar vivendo com seu melhor amigo. Sem demonstrações do que sente.
Poderia dizer que sofri com minha decisão, que jamais quis ir embora de verdade, que esperei muito tempo que me chamasse de volta, que não amei outro que não fosse você.
Depois de alguns anos, refez sua vida com outra mulher que eu não conhecia. Não sei se foi feliz com ela, porque não sei se é capaz de ter esse sentimento por qualquer pessoa que não seja Carlinhos.
Nosso filho se tornou homem.
Marcos morreu num acidente de carro, quando vinha me trazer um presente e um cartão com flores, como sempre fez durante todos os anos em que comemorávamos estar juntos.
Fui feliz com ele, só não consegui amá-lo porque nunca esqueci você.
Quando adoeceu, Carlinhos me avisou e disse a ele ter vontade de vê-lo mais uma vez.
Numa hora em que sua mulher saiu e você ficou entregue aos cuidados dele, ligou e eu fui até sua casa.
Dormia. Da porta do quarto fiquei olhando-o. Carlinhos saiu e me deixou sozinha. Aproximei-me e abaixando ao lado da cama, segurei sua mão. Abriu os olhos e encontrou os meus. Fechou-os rapidamente.
Abri a gaveta da mesinha ao lado da cama e vi a foto antiga debaixo de alguns papéis. Coloquei no mesmo lugar.
Você apertava os olhos com força para que não abrissem. Beijei seu rosto e a palma de sua mão.
Espero que não se vá sem me perdoar. Eu já o perdoei.
Saio do quarto e me volto apenas uma vez. Permanece com os olhos fechados. Não mudou nada. Nem eu mudei.

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".