gosto de olhos
- Atualizado em 09/10/2019 22:02
Gosto de olhos
Cândida Albernaz
 
Gosto de olhos moleques, que encaram, firmam e não fogem.
 
Quando o conheci, era um garoto ainda e buscava o mundo para si, como se este estivesse à disposição.
Seus pais, que se mudaram para perto de minha casa há pouco, encaravam nossa amizade com certa restrição.
O problema era mamãe. Depois de ter o terceiro filho, ela modificou. Conseguia num mesmo dia arrumar toda a casa, enfeitá-la com flores, levar-nos ao parque, mas sem que esperássemos, trancava-se no quarto, onde nenhuma luz podia entrar. Do lado de fora, onde éramos obrigados a ficar, ouvíamos seus soluços. Isso podia durar muitos dias. Só papai, por diversas vezes através da força, a convencia tomar banho ou comer.
As crianças chamavam-na de “louca”.
Você de longe, me olhava e saía a defendê-la. Por mim.
Seus olhos acalmavam.
 
Olhos que sorriem de forma safada, que buscam outros olhos sem medo.
 
Nos últimos três anos, seus pais o matricularam numa escola fora de nossa cidade. Eles acharam melhor que fosse assim. Diziam que “será alguém na vida”, e se continuasse aqui, não poderia crescer.
Isolei-me de todos nessa época. Costumava ficar sozinha e quase não ia a lugar algum.
Fazia o segundo grau. Estava na frente de casa, chegando da escola, quando do outro lado da rua vi você parado. Olhava-me: de outra forma.
Veio até onde estava e conversamos por muito tempo. Quis saber tudo a seu respeito e você contou sobre uma vida cheia do que fazer, tão diferente da minha.
Passamos a nos encontrar todos os dias daquele minúsculo mês em que ficou na cidade.
Sua mãe quando nos via, olhava esquisito, como se eu a incomodasse. Fingia não perceber. Sempre que chegava a casa, deixava minhas coisas no quarto e atravessava a rua para chamá-lo.
Dois dias antes de você ir embora novamente, não fui à aula e fiquei em casa com mamãe, que já estava trancada no quarto havia uma semana.
Você veio naquela noite e na minha cama, enquanto não tirava meus olhos dos seus, buscou em meu corpo o prazer que eu só conhecia sozinha até então.
No dia seguinte, sem que ninguém soubesse, o esperei no mesmo lugar. Você voltou.
 
 
Olhos que tentam dizer tudo, mas você não adivinha o que falam.
 
Nos próximos cinco anos, passei sem vê-lo. Seus pais costumavam viajar para encontrá-lo e nas poucas vezes em que me deram atenção, disseram que talvez não voltasse mais. Já estava até mesmo trabalhando por lá.
Escrevi várias cartas e pedi que eles as entregassem. Diziam que sua vida era cheia do que fazer e o tempo, curto. Devia ser assim mesmo. Nunca houve resposta.
Minha mãe, nesse período, foi internada. Tentara contra a vida algumas vezes e disseram ser melhor para ela. Não havia mais momentos de euforia, só depressão.
Estava saindo de casa para visitá-la quando o vi atravessando. Chegou perto de mim e apresentou-me a garota: sua noiva e se casariam no início do próximo ano.
Busquei seus olhos, mas não consegui entender o que diziam. Pela primeira vez.
“Quem é essa menina linda ao seu lado?”.
“Minha filha”.
“Disseram que teve uma filha. Casou-se?”.
“Não, o pai foi embora”.
“Desculpe a intromissão”.
“Não tem problema. Melhor assim, sei como criá-la”.
A garota que estava com ele, como era mesmo o nome dela? , chamou-o. Despediu-se e se foi. Olhou ainda uma vez para trás. Nossos olhos se encontraram. Entendi, como sempre.
Abraçou a noiva com mais força e não se voltou mais.
Fui ver mamãe junto com Carolina. Ela costuma ir comigo a todo lugar.
Tem cinco anos, minha filha.
Ele não perguntou.
 
Gosto de olhos, não importa a cor ou o formato.
 
 

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".