Gosto de olhos
Cândida Albernaz
Gosto de olhos moleques, que encaram, firmam e não fogem.
Quando o conheci, era um garoto ainda e buscava o mundo para si, como se este estivesse à disposição.
Seus pais, que se mudaram para perto de minha casa há pouco, encaravam nossa amizade com certa restrição.
O problema era mamãe. Depois de ter o terceiro filho, ela modificou. Conseguia num mesmo dia arrumar toda a casa, enfeitá-la com flores, levar-nos ao parque, mas sem que esperássemos, trancava-se no quarto, onde nenhuma luz podia entrar. Do lado de fora, onde éramos obrigados a ficar, ouvíamos seus soluços. Isso podia durar muitos dias. Só papai, por diversas vezes através da força, a convencia tomar banho ou comer.
As crianças chamavam-na de “louca”.
Você de longe, me olhava e saía a defendê-la. Por mim.
Seus olhos acalmavam.
Olhos que sorriem de forma safada, que buscam outros olhos sem medo.
Nos últimos três anos, seus pais o matricularam numa escola fora de nossa cidade. Eles acharam melhor que fosse assim. Diziam que “será alguém na vida”, e se continuasse aqui, não poderia crescer.
Isolei-me de todos nessa época. Costumava ficar sozinha e quase não ia a lugar algum.
Fazia o segundo grau. Estava na frente de casa, chegando da escola, quando do outro lado da rua vi você parado. Olhava-me: de outra forma.
Veio até onde estava e conversamos por muito tempo. Quis saber tudo a seu respeito e você contou sobre uma vida cheia do que fazer, tão diferente da minha.
Passamos a nos encontrar todos os dias daquele minúsculo mês em que ficou na cidade.
Sua mãe quando nos via, olhava esquisito, como se eu a incomodasse. Fingia não perceber. Sempre que chegava a casa, deixava minhas coisas no quarto e atravessava a rua para chamá-lo.
Dois dias antes de você ir embora novamente, não fui à aula e fiquei em casa com mamãe, que já estava trancada no quarto havia uma semana.
Você veio naquela noite e na minha cama, enquanto não tirava meus olhos dos seus, buscou em meu corpo o prazer que eu só conhecia sozinha até então.
No dia seguinte, sem que ninguém soubesse, o esperei no mesmo lugar. Você voltou.
Olhos que tentam dizer tudo, mas você não adivinha o que falam.
Nos próximos cinco anos, passei sem vê-lo. Seus pais costumavam viajar para encontrá-lo e nas poucas vezes em que me deram atenção, disseram que talvez não voltasse mais. Já estava até mesmo trabalhando por lá.
Escrevi várias cartas e pedi que eles as entregassem. Diziam que sua vida era cheia do que fazer e o tempo, curto. Devia ser assim mesmo. Nunca houve resposta.
Minha mãe, nesse período, foi internada. Tentara contra a vida algumas vezes e disseram ser melhor para ela. Não havia mais momentos de euforia, só depressão.
Estava saindo de casa para visitá-la quando o vi atravessando. Chegou perto de mim e apresentou-me a garota: sua noiva e se casariam no início do próximo ano.
Busquei seus olhos, mas não consegui entender o que diziam. Pela primeira vez.
“Quem é essa menina linda ao seu lado?”.
“Minha filha”.
“Disseram que teve uma filha. Casou-se?”.
“Não, o pai foi embora”.
“Desculpe a intromissão”.
“Não tem problema. Melhor assim, sei como criá-la”.
A garota que estava com ele, como era mesmo o nome dela? , chamou-o. Despediu-se e se foi. Olhou ainda uma vez para trás. Nossos olhos se encontraram. Entendi, como sempre.
Abraçou a noiva com mais força e não se voltou mais.
Fui ver mamãe junto com Carolina. Ela costuma ir comigo a todo lugar.
Tem cinco anos, minha filha.
Ele não perguntou.
Gosto de olhos, não importa a cor ou o formato.