tranque bem a porta
- Atualizado em 18/09/2019 23:52
Tranque bem a porta
Cândida Albernaz
- Dona Belinha, tranque bem a porta. Não se esqueça do que aconteceu com dona Guiomar no mês passado. E depois, seu Getúlio gosta de tomar o vinhozinho dele e dorme feito uma pedra.
-Não se preocupe Berenice. Sou velha, mas não sou burra. Assim que você sair, fecho tudo.
-Então até amanhã.
-Até. Vai com Deus.
Lembrava bem do que aconteceu com Guiomar, sua vizinha. Havia pedido um remédio na farmácia. Quando a campainha tocou, achou que fosse o rapaz da entrega. Entraram dois homens fortes, segundo ela que era tão magrinha, e empurraram-na fazendo com que caísse no chão.
Pegaram a pobre e fizeram com que entregasse o que tinha em casa. Até as economias que escondia numa caixinha de costura, os danados levaram. O pior é que na queda quebrou o braço. Chora todo dia, Guiomar.
Berenice se preocupa comigo, mas às vezes é muito chata, repetindo sempre a mesma coisa: Tranque a porta, vê se desligou o gás, deixe que passo a roupa, não vá ligar o ferro... Pensa que não consigo tomar conta de mim. É verdade que às vezes esqueço de algumas coisas, mas quem não esquece? Até minha filha que ainda é jovem deixa de fazer coisas porque não se lembra.
Outro dia mesmo, era aniversário do pai e ele ficou esperando que ela ligasse o dia inteiro. Getúlio tem uma paixão por essa menina... À noite, consegui disfarçar e liguei para ela. Pediu mil desculpas e mandou chamá-lo. Ficou todo bobo e só no dia seguinte quis cortar o bolo que fiz para ele. Vamos comer com nossa filha amanhã. Coitada, trabalhou tanto que só pôde me ligar a essa hora. Não vem mais. Eu aconselhei, é tarde e pode ser assaltada.
Disfarçou bem o meu velho, mas na hora de dormir percebi que enxugava os olhos e fungava o nariz. Nem perguntei se estava gripado, sabia que não era isso.
Ás vezes fico preocupada com Berenice. Sai daqui de casa cedo, mas até chegar onde mora tem que pegar dois ônibus.
É uma mulher robusta, alta e tem força nos braços. Quando Getúlio esteve doente, era ela quem conseguia mover com ele. Até banho me ajudava a dar. Luta muito, não é casada e tem um filho que vive dando aborrecimento.
Peguei Berenice chorando na cozinha e fiz com que desabafasse comigo. Falou que o garoto está andando em má companhia. Outro dia apareceu com dinheiro grande, quis saber como conseguiu e ele só faltou bater nela. Esse menino não vai acabar bem. Tem dezenove anos e não quer saber de trabalho.
Ela não mede esforços para colocar em casa o que precisa. Trabalha muito e eu a ajudo de vez em quando. Conseguiu comprar TV, geladeira e deu ao filho um aparelho de som o qual paguei uma parte. Três dias depois o rapaz disse que entraram na casa e roubaram o som. Que nada, deve ter vendido porque depois ela me contou que ele apareceu com um tênis novo e um casaco que parecia ser caro. É muito triste ter filho assim, que só dá desgosto.
Minha filha hoje esteve aqui para almoçar conosco. Eu mesma fiz uma comidinha gostosa, porque Berenice não apareceu. Deve ter acontecido alguma coisa, que ela não é de faltar.
O Getúlio ficou feliz e eu também, claro. Só temos essa filha. Não se casou, portanto não temos neto. Era o meu sonho e o dele. Ter um netinho para podermos mimar, mas Deus não quis que ela arranjasse um marido e tivesse filhos. Agora com a idade que tem, não tenho mais esperança.
Pena não poder vir sempre. Esforçada minha menina e carinhosa também. Só é esquecida.
O telefone está tocando.
Vou atender enquanto os dois riem das recordações de Getúlio.
-Alô? O quê? Sei, sei...
Senti o coração apertado. Voltei para a sala e os dois me olharam.
-Falaram que ontem à noite entraram na casa da Berê atrás do filho dela. O menino se escondeu, mas os homens conseguiram achá-lo. Na hora do disparo, Berenice se colocou na frente. Não adiantou muito. Morreu ela e depois o mataram também.
Coitada, estava tão preocupada que entrassem aqui em casa para assaltar.
Na casa dela nem campainha tem.

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".