Crítica de cinema - Ficção e realidade na idealização de Hollywood
*Felipe Fernandes 16/08/2019 20:19 - Atualizado em 26/08/2019 13:48
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(Era uma vez em... Hollywood) —
Uma das características mais marcantes do cinema de Quentin Tarantino é sua cinefilia. Seus filmes sempre foram de certa forma sobre o cinema. Seja em maior ou menor escala, em pequenos diálogos, em grandes referências ou até mesmo em um grupo nazista queimado dentro de uma sala de cinema, seus filmes têm como característica esse distanciamento da realidade e essa aproximação com o ficcional.
“Era uma vez em... Hollywood” retrata três dias do ano de 1969, é a recriação de uma época marcante na terra do cinema, período onde o país passava por grandes transformações políticas, sociais e comportamentais e teve um violento e traumático evento, que no entendimento do cineasta mudou o cinema americano da década seguinte.
O longa tem três personagens centrais. Acompanhamos Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), um ator muito famoso por uma série de western de sucesso na TV, que se encontra em um momento de decadência na carreira, onde só consegue papel de vilões em produções de baixa qualidade; Cliff Booth (Brad Pitt), seu dublê, motorista e faz tudo nas horas vagas, que também vive um momento de ostracismo; e a jovem Sharon Tate (Margot Robbie), uma promissora atriz que vive sua plenitude.
O longa não tem uma trama definida. Tarantino busca recriar a época e imergir o espectador na Hollywood idealizada pelo diretor. Essa jornada é realizada através desses três personagens, (sendo os dois primeiros personagens fictícios), passando por produções da época, pelos bastidores dos estúdios ou pelas incontáveis cenas de personagens dirigindo e atravessando a cidade repleta de luzes e cores.
O longa recria cenas de produções da época, propagandas marcantes, são várias as cenas que contam com uma TV ligada, exibindo programas da época. Traz a dupla principal em meio a sets de filmagem, interagindo com personalidades marcantes da época e inserindo elementos aparentemente aleatórios que provocam algum divertimento e, posteriormente, vão ter alguma relevância para a história.
Tarantino parece se divertir muito em suas referências, no visual e nostalgia da época. Existe um excesso de cenas de personagens em movimento, cruzando Hollywood, são cenas que acabam não acrescentando muito, não contribuem na imersão, justamente devido ao excesso, e prejudicam o ritmo do longa.
O roteiro também faz uso de vários flashbacks. Existem até flashbacks dentro de flashbacks, mas estes, sim, funcionam muito bem no desenvolvimento dos personagens e da relação entre Rick e Dalton. Como de costume, o roteiro de Tarantino é um dos pontos fortes do filme. Mesmo que não traga diálogos memoráveis, o diretor usa a seu favor a nostalgia, a mistura de ficção e realidade, e cria pelo menos duas cenas muito marcantes. Uma envolvendo Sharon Tate curtindo a reação do público a um de seus filmes e a outra, já meio famosa e polêmica, na luta entre Cliff e Bruce Lee.
Dos três dias em que o filme acontece, o último é o fatídico 09 de agosto de 1969. Foi na noite dessa data que ocorreu o assassinato de Sharon Tate (então grávida de nove meses) e seus amigos pela seita de Charles Manson. Um dos maiores problemas do filme, é que ele exige do espectador o conhecimento prévio dessa história. Quem não conhece a história (presumo que a maioria) vai se sentir deslocado no terceiro ato, já que o mesmo funciona como uma preparação para os eventos da noite, com o surgimento até mesmo de um narrador.
As questões dos hippies e da seita são abordadas sempre em segundo plano. Todas as questões políticas e sociais da época são ignoradas pelo diretor e retiradas dessa sua Hollywood. Não que elas deveriam ser o foco, mas elas simplesmente não existem, como se Hollywood fosse um local à parte, onde a realidade não chegasse até ali.
Os hippies são retratados da maneira superficial e até preconceituosa em alguns momentos e só têm algum espaço, pois é impossível tocar na seita de Manson sem falar neles. A cena de Cliff visitando o rancho que serviu de set para suas antigas produções e se tornou o recanto dos membros da seita, é um retrato de como o diretor enxerga a situação que aconteceu posteriormente. A Sharon Tate, interpretada por Margot Robbie, é uma personificação do ideal, do espírito daquela Hollywood na visão de Tarantino. A personagem tem poucas falas, mas surge sempre alegre, sorridente, dançando; o filme traz um olhar apaixonado por sua figura. A cena dela no cinema curtindo a reação da platéia ao seu trabalho é tocante, muito em função de já sabermos o que a aguarda, voltando ao problema do conhecimento prévio.Em seu desfecho, o filme tem a explosão de violência peculiar do diretor, no momento mais tarantinesco do filme. Alguns detalhes aleatórios apresentados durante o filme se encaixam, criando uma mistura de humor e violência, em um artifício de roteiro que Tarantino sempre usou muito bem.
Este parágrafo aborda detalhes importantes do final do longa. Recomendo a quem não assistiu ao filme pular para o último parágrafo. O clímax mudando o desfecho real da história é Tarantino mais uma vez usando sua arte para mudar os rumos da história, quebrando toda a expectativa do espectador e aqui preservando a sua Hollywood na figura de Sharon Tate. Se em “Bastardos inglórios” esse artifício soava divertido, mas como mero capricho, aqui ele permite um final satisfatório, pois ainda cria a possibilidade de uma nova oportunidade para a dupla principal, em um desfecho mais que feliz, um desfecho que funciona muito bem com o que foi apresentado até ali.
“Era uma vez em... Hollywood” é o filme mais diferente do diretor. Não é inovador, mas traz elementos novos para sua filmografia. Com um elenco estrelado e repleto de referências, esse filme é a carta de amor de Tarantino à sétima arte. Anunciado como seu penúltimo filme, o diretor parece estar ficando nostálgico com a idade e o encerramento de sua bem sucedida carreira.

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