Foi na virada do ano
- Atualizado em 14/08/2019 22:49
Foi na virada do ano
Cândida Albernaz
Ontem pensei em desistir.
Carolina segurava com as duas mãos a rede em que eu estava e puxava para bem perto dela, até que soltava. O balanço me fazia rir e pedia que ela empurrasse mais e mais rápido.
Quando cansava, fixava em mim seus olhos imensos como duas jabuticabas brilhantes. Eu tentava apertar sua mão com um olhar sério e diferente do garoto brincalhão. Ela se encolhia e puxando a mão, corria gritando para que a pegasse. Voltava à criança que realmente era até que, se tivesse sorte, conseguia jogá-la no chão e cobrir seu corpo com o meu. Carolina então parava de rir e dizia que a brincadeira havia terminado. Obediente, me levantava e deixava que fosse para casa. No dia seguinte, sabia que esqueceria e voltaria a me procurar.
 
Ontem pensei em desistir.
O tempo das brincadeiras infantis havia passado. Às voltas com livros e cadernos, sempre que podia pedia que Carolina me ajudasse. Tinha dificuldade em algumas matérias e ela era ótima em todas.
Às vezes sua mãe entrava na sala trazendo uns sanduíches para comermos. Então rapidamente eu retirava minha perna que fazia pressão na de Carolina. Quando dona Cecília saía, mexia na cadeira, até que encontrava o melhor jeito de voltar à posição anterior. Carolina fingia não perceber, mas quando pressionava mais forte, a caneta tremia em suas mãos. Eu abaixava a cabeça e sorria.
 
Ontem pensei em desistir.
Durante o período da faculdade, saí com algumas garotas e Carolina namorava firme um amigo. Eu os apresentei e dei força para que ficassem juntos. Todos diziam que os dois haviam sido feitos um para o outro. Dona Cecília mimava o rapaz e o tratava como filho.
Ninguém entendeu quando durante as festas de fim de ano, Carolina acabou com aquele namoro. Meu amigo chorava como criança perguntando o que poderia ter acontecido para que ela mudasse de ideia de repente.
Eu o consolei como pude.
Na mesma noite procurei Carolina e antes que falasse qualquer coisa, num canto da varanda, a beijei da mesma forma que fizera dois dias atrás, cinco minutos antes da virada do ano, sem que ninguém, menos ainda meu amigo, pudesse ver.
 
Ontem pensei em desistir.
Do carro, não sobrou nada. Disseram que tive sorte por escapar vivo. Não sei bem o sentido da palavra sorte. Fiquei em coma por muitos dias e quando me deram alta, voltei para casa numa cadeira de rodas. Não sabem quando volto a andar. Não sabem se volto a andar. Passou um ano desde o dia do acidente. Ainda sinto fortes dores e uso a cadeira. “Não houve muito progresso no seu quadro, tem que ser esforçar mais”.
Carolina entra na sala e pergunta se preciso de alguma coisa. Digo que preciso dela. Aproxima-se e senta sobre minhas pernas. Pena não sentir seu corpo. Passa as mãos em meus cabelos e brinca que estou ficando careca. Olho aqueles olhos negros e vejo que ainda me ama. Começa a falar de nossos filhos e da dificuldade do mais novo com seus relacionamentos com as garotas. Damos risada e antes de se levantar, me beija. Sinto o gosto daquele réveillon de trinta anos atrás.
Pede que faça os exercícios de que preciso e deixe de ser malandro, porque a recuperação depende de mim.
Mais um beijo e se levanta. Vai verificar se o almoço está pronto para ser servido.
 
Não vou desistir nunca.

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".