que falta me faz
- Atualizado em 08/08/2019 10:45
Que falta me faz
Cândida Albernaz
Nossa!, como a barriga está pesando. Estou com oito meses. Sinto um cansaço carregar para lá e para cá essa criança dentro de mim.
Prenha aos dezesseis anos. Droga! Minha mãe já falou que não ajuda.
- Se soube arrumar filho, que cuide dele sozinha.
E é sozinha mesmo, porque Daniel sumiu. Tão carinhoso e tão cheio de dengos. Soube da gravidez e botou o pé no mundo.
Como meu pai. Ela conta que os dois se amaram muito. Ele vivia atrás dela, fazendo todas as vontades.
Trabalhava no armazém de seu Zé e ela costumava ir até lá fazer compras: para o almoço, para o jantar, para o café. Quando vovó dizia que precisava de alguém que fosse comprar qualquer coisa, ela era a primeira a se oferecer. Se ofereceu tanto, que deu no que deu.
 
* *
Descer a ladeira não é moleza. Não vejo a hora de ter esse moleque logo. Quero voltar para a vida normal. Mãe é que fala:
- Vida normal, você vai ver o que é. Nem os estudos vai conseguir terminar.
Acho estudar uma chatice. Vivo arrumando confusão na escola. Quando namorava o Daniel então, era pior. Tinha uma putinha por lá que vivia no pé dele. Até quando estávamos juntos ela não respeitava. Um dia me enchi e chamei para rolar comigo na areia. Acabei com ela. Saiu toda arranhada e um punhado daquele cabelo oxigenado veio parar na minha mão. Nunca mais se engraçou.
Na verdade, depois que Daniel se mandou ela passa por mim e dá um risinho cínico. Agora não posso fazer nada mesmo, mas deixa meu filho nascer!
 
* *
Papai e mamãe não se casaram com papel passado. Na época, uns amigos contaram que ele tinha mulher e filhos numa cidade não muito perto dali. De qualquer forma, foram morar juntos porque meu avô obrigou.
Mãe falou que estava tão feliz que nem se importou com isso.
Quinze anos ela tinha.
Depois que nasci meu pai ficou com ela por dois anos.
A coitada sempre fala que ele foi o melhor homem que conheceu. Fazia todas as suas vontades.
Eu penso comigo: “De que adiantou? Um merda igual aos outros”.
 
* *
Acabo chegando atrasada no posto de saúde. Vou sozinha porque mamãe não tem tempo e minhas irmãs trabalham. Sempre fui acostumada a me virar quando preciso de algo.
Acho que desconta em mim o que papai fez com ela. Diz que sou a cara dele e é como se o tempo voltasse.
- Ele era bom, mas adorava arrumar confusão na rua, assim como você.
Eu não arrumo confusão, as pessoas me provocam.
Outro dia, estava indo para a escola e a idiota da Marluce veio perguntar quando Daniel voltaria para assumir o filho. Não respondi e continuei andando. Ela então comenta com a amiguinha do lado:
- Agora vai ter que abrir as pernas para qualquer um se quiser alimentar esse aí.
Nem foi tanto pelo “abrir as pernas”, mas chamar meu filho de “esse aí”, não deu para aguentar. Bati tanto na cara dela que até a polícia apareceu.
O namoradinho tomou as dores, e agora quer me pegar. Covarde! Homem contra mulher. E grávida!
 
* *
Um dia, meu pai falou que ia levar uns produtos para vender na cidade vizinha. Seu Zé foi quem mandou. Está vendendo até hoje. Vovô ainda tentou ir ao rastro dele, não adiantou. Sumiu e ninguém mais soube nada. Mãe demorou a acreditar. Chorou muito tempo até que cansou.
Três anos depois casou com seu Artur, um amigo do meu avô que queria cuidar dela. Teve mais cinco filhos com ele. Homem bom, só é um pouco velho.
 
* *
Estou chegando perto do ponto de ônibus, mais cansada que o normal. As pernas estão inchadas.
-Oi!
Marluce está na minha frente com o sorrisinho sem vergonha dela.
- Vamos resolver a cara marcada de Marluce agora. Comigo!
Nem tive tempo de falar nada. O namorado dela, que estava junto, me deu um soco e senti o nariz quebrando. Covarde, covarde!
Chutou minha barriga. “Aí não, meu bebê!”.
Chegou gente e o segurou. Um filete de sangue descia das minhas pernas, manchando rapidamente a terra. Senti uma dor forte e não pude levantar.
Alguém me segurou no colo, tentando arrumar um carro.
- Rápido, está perdendo muito sangue.
Onde está papai?, ah, se você estivesse aqui, se eu não te perdesse com dois anos, se mãe conseguisse me amar, se meu filho conseguir nascer...

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".