O processo da criação nas anotações de um poeta
18/04/2019 20:20 - Atualizado em 19/04/2019 13:07
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Por Vilmar Rangel*
Na perspectiva de abordar alguns aspectos da literatura, com ênfase na poesia, levantamos aqui determinados aspectos do processo de criação. O que me proponho a oferecer, nestas linhas, é na verdade um pouco da vivência que acumulei em alguns ramos da literatura — contos, crônicas, poemas e trovas —, ao longo de mais de 60 anos, ressaltando mais de perto o método de que me vali para criar grande parte de minhas produções, como pode ser conferido no texto “Uma outra voz”, encontrado na introdução do meu mais recente livro – Dança entre dorsos tensos .
Muito embora admita que a inspiração para o surgimento do fato poético possa originar-se também de esferas extrafísicas2, não consigo imaginar que toda e qualquer produção que se faça de modo consciente, intencionalmente trabalhada, provenha unicamente das musas, do além, ditadas por entidades sempre disponíveis, em estado de plantão ou prontidão. Seria desprezar ou desmerecer todo o conhecimento que, através do ensino, dos estudos, da leitura, assim como da vivência com o meio, através de fatos concretos, o autor — ser humano – acumulou e consolidou para formar a sua bagagem intelectual e a sua personalidade. Nesse caldeamento se juntam atavismo e experiência, fundamentais para a composição de sua massa crítica, verdadeiro caldeirão onde se somam conflitos, angústias, inquietações anímicas ou mesmo estéticas, e, eventualmente motivos de alegria. Nasce aí a carga biopsíquica que vai municiar o autor ao longo de sua criação.
A priori, tenho dificuldade de aceitar a ideia de que as manifestações criativas sejam resultado, sempre e unicamente, do que foi ditado por entes extracorpóreos, por mais solícitos e também “inspirados” eles sejam. Em inúmeros casos, o poeta revela completo domínio da temática que escolheu, falando de coisas reais, concretas, conhecidas e vividas por ele. São peças que, salvo ilusão minha, dificilmente teriam sido ditadas ou sopradas por musas ou entes do plano espiritual.
Na verdade, o que me move, com a sincera modéstia de um escriba paroquial, é a oportunidade de tentar demonstrar ser perfeitamente possível ao escritor ou ao artista – na mais ampla acepção do vocábulo –, criar pelos seus próprios meios, especialmente quando se propõe a isso, de forma deliberada.
Se o escritor, o artista plástico ou o músico dependessem unicamente da centelha da inspiração, não poderiam ser apontados como criativos. A criatividade é, em verdade, um atributo indissociável do artista, do escritor, do músico – de todos, enfim, que marcam sua passagem pelo mundo da criação.
Na Antiguidade considerava-se a criatividade como uma coisa divina, algum dom originado de um sopro vital. Depois, Kant aboliu o sentido divino desse dom. E durante muito tempo as pessoas criativas pagaram um preço: o ceticismo ou a hostilidade dos contemporâneos diante do que fosse novidade. Copérnico e Galileu foram denunciados como blasfemos. A teoria darwiniana da evolução desencadeou as iras do clero. A “Sagração da Primavera”, de Stravinsky, provocou um motim.
Acredita-se que o que barra a criatividade são os condicionamentos, as normas inflexíveis, e muitos autores hoje defendem que o indivíduo deve ser livre para fazer perguntas desconcertantes e dar respostas surpreendentes. A História revela algumas manias dos criadores, como se cada um deles necessitasse de um clima, um ambiente emblemático para garantir condições de criar sua arte. Schiller só criava enchendo a mesa de maçãs podres. Hemingway escrevia de pé. Balzac vestia uma bata branca. Mozart fazia atividade física antes de compor. Baudelaire fumava haxixe.
Vale lembrar que a criatividade existe em qualquer campo, inclusive na tecnologia, no comportamento ou na pesquisa científica. O ser criativo explora toda a possibilidade de se jogar na experiência e não se deixa moldar, mostrando que para se avaliar o novo é necessário também um novo sistema de valores, a partir do qual deve-se valorizar o exercício da imaginação — “mais importante que o conhecimento”, segundo Einstein.
No meu caso pessoal, nos últimos anos impus a mim mesmo um método de criação até então não tentado: anotar palavras, expressões completas ou não, aparentemente vagas, sem um sentido já claro ou completo, e em seguida tentar agrupar essas frases de um modo que começassem a ganhar um conteúdo expressivo, revelando certa coerência, alguma carga dramática ou simplesmente poética. Após um trabalho próprio de ourives, foi possível chegar – não a uma obra prima, claro – mas a um “produto” palatável, que revelasse qualidades mínimas para ser “consumido” e apreciado.
Por uma questão de comodidade, poderia explicitar o meu processo de criação, invertendo radicalmente os números daquele prosaico bordão: 10% de inspiração e 90% de transpiração. Para outros, certamente, a proporção seria inversa, tradicional. Mas o que realmente ocorre nesse glorioso momento, quando se prenuncia o embrião do poema?
Imaginemo-nos no limiar do processo criativo. Após o despertar, em forma de incitamento e provocação, de temas inconscientes, vive-se o instigante desafio de extrair de cada palavra o máximo de sua carga expressiva, de sua força simbólica, de sua riqueza semântica, a ponto de quase esgotar sua capacidade significante. Encadeando-se a outras, ela cumpre o papel de seduzir o autor e, com suas companheiras, formar o caldo sensorial que dará forma definitiva ao poema.
É como explorar febrilmente uma prodigiosa mina de inimagináveis e ricas possibilidades, onde o poeta busca não o mineral bruto, mas o raro diamante semipronto, que se deixa lapidar até ser passível de representar a exata e completa ideia perseguida pelo poeta. A inspiração? Ah, ela sempre comparece, bondosa e tranquila, etérea e quase impressentida, no momento certo...
Finalizando: embora não goste muito da palavra método, admito que ela é a que melhor traduz o esforço organizado do criador para dar uma estrutura a seu trabalho. Esse cuidado, que desemboca no acabamento, oferece diferentes possibilidades de leitura, de apreciação, de captação do sentido da obra, pelo leitor, pelo observador, pelo “consumidor” da obra.
Nada seria mais adequado que encerrar estas anotações com o verbo incomparável que resplende da genialidade campesina, pantaneira e plural de Manoel de Barros. Como segue.
“A poesia é o mel da palavra, a mais pura destilação da palavra. Quando o homem se aperfeiçoa para pássaro, está querendo ser poeta. Mas não basta aperfeiçoar-se em pássaro para cantar. É preciso imprimir no canto uma arquitetura humana. O método. Poesia não é devaneio, ora pois. É trabalho com palavras”.
1 Rangel, Vilmar. Campos dos Goytacazes, Grafimar, 2010.
2 Cf. Rangel Jr., Vicente Marins. As artes do daimon: à procura de uma poética perdida (Tese de Doutorado, UFRJ, 2006).
* Acadêmico, Assessor Cultural (ACL).
 
 

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