Quadrinhos contam a história da escravidão
06/09/2018 19:23 - Atualizado em 10/09/2018 13:55
O professor, ilustrador e autor de histórias em quadrinhos Marcelo D’Salete ganhou, no dia 20 de julho, o Eisner Awards 2018 de melhor edição americana de material estrangeiro pela obra “Cumbe” (Run for it). O prêmio é conhecido como o Oscar dos quadrinhos e é entregue todos os anos durante a Comic-Con de San Diego. A obra do brasileiro fala sobre a resistência do povo negro durante a escravidão e aborda conflitos, dramas, esperanças e sonhos de escravizados trazidos dos antigos reinos da Angola e do Congo.
O movimento do rap e o hip hop, ainda nos anos 80, foi um dos responsáveis por começar a sensibilizar o paulistano para as injustiças sociais e raciais, herança do período escravista. “Isso foi importante para chamar a atenção para a questão etno-racial aqui no Brasil e também nas diferenças sociais que nós temos de modo tão alarmante”, explicou.
Nascido na zona leste da capital paulista, D’Salete contou, em entrevista, que sempre estudou em escola pública em São Mateus e Artur Alvim e que depois fez ensino médio em um colégio técnico no Brás. Segundo ele, essa fase foi importante para que ele conhecesse diversos artistas. Depois, D’Salete fez artes plásticas na USP e cursou mestrado em história da arte.
Negro, Marcelo ponderou que a escolha do tema foi quase natural por ter sempre vivido as questões da negritude e que, por essa razão, entende que o lugar de fala para construção dessa narrativa é um ponto importante de ser considerado. “Falar sobre a sociedade brasileira, falar sobre o Brasil colonial é a partir dessa experiência negra diaspórica e, em grande parte, periférica, dentro dessa sociedade. Essa é a minha perspectiva”, explica.
Segundo D’Salete, as pesquisas para sua obra foram feitas em bibliotecas na USP (Universidade de São Paulo) e no Museu Afro Brasil. Assim, ele teve contato com obras importantes voltadas para o tema, documentos sobre a escravidão.
Para ele, foi “uma surpresa muito grande” quando recebeu a notícia de que tinha vencido a premiação, já que essa é uma forma importante de dar visibilidade à perspectiva negra sobre esse momento da história. “Essa obra surgiu há muito tempo”, afirma contando que, em 2004, teve contato com diversos textos falando sobre o tempo colonial e o Brasil atual. Isso o impulsionou a entrar ainda mais a fundo nessas histórias. “Mas, antes disso, essas discussões já estavam nas músicas que eu ouvia e na literatura também”, diz.
Com relação a isso, inclusive, Marcelo conta como, desde cedo, acabou tendo que enfrentar situações de racismo naturalizadas em uma sociedade classista e racista como a nossa. “Quando garoto eu comecei a trabalhar como office boy e em mais de um momento eu fui orientado a entrar no elevador de serviço e não pelo social. Isso por volta de 95, 96. Eu lembro trabalhava na região da Paulista e era esse o tipo de tratamento que eu tinha lá. Em outro momento, eu estava em uma banca de jornal, isso era final de 90 também, e eu estava vendo uma revista em quadrinhos, pensando se eu ia comprar ou não e o vendedor veio e tirou a revista da minha mão, sem dizer nada, considerando que eu não era consumidor e, muito menos, cidadão”, relatou. “Esses e vários outros casos também. Ser parado pela polícia, mesmo na Universidade de São Paulo. Em aeroporto, indo fazer parte de festival internacional de quadrinhos, fui barrado e por aí vai“.
Para ele, desde os tempos de ditadura o movimento negro é atuante, mas, durante esse período, esteve invisibilizado, porque falar de racismo e negritude era uma questão política e um motivo para perseguir pessoas. “Sendo assim, imagino que desde a década de 80 a gente tem um crescente nessa discussão. Na década de 80 e 90 eu já percebia que esse era um assunto, um termo, que não entrava na pauta de partidos políticos, de organizações estudantis. Hoje eu vejo que existe uma permeabilidade maior em relação a esses temas. Isso talvez faça com que a gente tenha um protagonismo maior de personalidades negras falando sobre esse tema também, inclusive na internet e nas redes sociais”, disse D’Salete.
“Cumbe” foi publicado também em Portugal, França, Áustria, Itália e EUA. A obra foi indicada ao HQMIX 2015 (categoria desenhista, roteirista e edição nacional); selecionado pelo Plano Ler + para leitura em escolas de Portugal e indicado ao prêmio Rudolph Dirks Award 2017 (categoria roteiro) na Alemanha. (A.N.)

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