O Curioso Caso do Gato Champanhe
*José Cunha Filho - Atualizado em 16/08/2018 18:40
Calor de rachar paralelepípedos!
O noticiário da tevê alertava para o risco de caminhar ao sol durante o dia.
A sorridente moça do tempo no jornal da noite — parece que engoliu um piano! — dizia que “a massa de ar seco vai permanecer e o calor amanhã chegará aos 42 graus no Rio com sensação térmica de 58 graus”.
— Fácil, filha, num estúdio refrigerado, sacanear os outros é bom. Pensou Carol enquanto desligava o notebook.
Carol havia ligado o ar condicionado do quarto no nível médio. A conta de luz já chegava à estratosfera e os proventos de uma procuradora jubilada não eram esta maravilha.
— Jubilada? Tenho que trabalhar duro para manter o padrão de vida, cadê o Thor?
Thor dormitava próximo a janela, gozando a fresca e o barulhinho do exaustor de água do aparelho de refrigeração. Gostava do ruído das gotas d’água na calçada externa. Carol, só de camisola, foi até a varanda e o viu.
Dormindo de barriga pra cima, naquela posição que os felinos adoram. As patas levemente dobradas, o dorso colado ao chão.
— Com os bagos ao vento, como diria papai. Mas é melhor botar o safado pra dentro daqui a pouco. Admirou um pouco mais a beatitude da cena. Uma lua cheia novinha em folha estava debruçada sobre a montanha, não demoraria muito a se esconder atrás dela. Voltou para o seu confortável escritório, montado junto à suíte onde dormia.
— Puxa! Onze da noite! E ainda não terminei o arrazoado da apelação. Bem, o prazo se esgota na próxima semana. Tem tempo...
O celular.
— Quem será a esta hora, Deus meu? Ah, Diná...
Recebeu um convite para um passeio de lancha na lagoa. Iriam as duas e um casal amigo.
— Sei não, negócio de lancha é perigoso, Diná!
— Na lagoa de Piratininga, Carol? E o Marcos tem carta de arrais. Depois nós almoçamos num restaurante que inauguraram esta semana e voltamos cada uma para a sua casa. Sem problemas...
Combinaram se encontrar na praia. Dia seguinte, sábado, era dia de faxina, precisava avisar a Solange para ter cuidados extras com Thor e Bebê. Um era o gato o outro o barulhento buldogue francês. Assim fez, ligou para a faxineira.
— Solange, vou a Piratininga. Você não deixe o Thor sair do quintal e muito menos o Bebê correr atrás dos micos e sumir no mato.
Apesar do muro alto, sempre os dois davam um jeito de escapar e chegar até aos limites do morro, uma reserva florestal em Itaipu. Morava no Morro das Andorinhas, tinha uma visão privilegiada das praias oceânicas.
Foi de carro até Piratininga. Diná a aguardava no estacionamento do restaurante. Junto com ela, um casal de meia idade.
— Marcos e Márcia, ele é jornalista e ela colega, também advogada militante.
— Agora apenas quatro pessoas querendo curtir uma fresca no “Poseidon”. O meu iate, 22 pés, motor turbinado!
Carol teve um mau pressentimento.
— Sei não, o nome não é o mesmo daquele filme-desastre “O Destino do Poseidon”?
Marcos riu.
— Já naveguei com o Poseidon até a costa de Guarapari, saindo aqui de Niterói ou do Rio. Não tem perigo. E afinal, sou filho de Iemanjá, que tem boas relações com o deus grego.
Riram-se e embarcaram para o passeio.
Que, apesar dos temores e do leve enjoo provocado pela lancha marolando, caturrando, quando ancoraram para um mergulho, correu bem.
— Se enjoar, tome Plasil, tem sobrando lá no armário do banheirinho.
O dia passou sem que percebessem. O verão chegava ao fim com jeito de forno de padaria, mas o número de turistas e veranistas na praia diminuíra. O que deixava mais tranquilo o acesso aos pontos turísticos e aos restaurantes.
Por sinal, um bom restaurante, “O Toca do Francês”. O dono era um argelino, Claude Bassam. Simpático, fez questão de cumprimentar os quatro amigos e se apresentar.
— Na verdade, sou pied-noir. Mon papá fugiu da Argélia em 62 e montou um restaurante em Marselha. Eu vim pra cá em 2002, tive uma pousada em Porto das Galinhas e resolvi tentar a sorte num lugar mais tranquilo. O Brasil tem paisagens surpreendentes, quem imaginaria que pertinho do Rio existe este paraíso?
O pé-negro recomendou lagostas ao creme de berinjelas, com salada síria.
— E o vinho tem que ser um Chateâu-Neuf-du-Pape! A primeira garrafa é oferta da casa. Vocês são uma simpatia!
Uma tarde perfeita. Boa comida, boa bebida, uma aragem vinda do mar, um pianista amante de Cole Porter, Gershwin, Jobim, um por do sol daqueles de se pedir bis como na ópera.
Carol despediu-se dos amigos e rumou para casa. Havia telefonado para Solange que lhe dissera que tudo estava em ordem, a casa arrumada, o jardineiro deixara o pequeno quintal e o jardim aparados, “os dois bichinhos haviam comido e dormiam no caramanchão perto do pé-de-cajá”.
Sem pressa, resolveu parar num supermercado e comprar uma garrafa de um tinto chileno e uma pizza. Poderia fazer um pequeno lanche mais tarde. Havia um filme do Woody Allen que queria rever, o “Meia-Noite em Paris”.
Mais tarde, relaxada, Thor e Bebê devidamente seguros, ambos dentro de casa em suas respectivas caminhas, lanchou, viu o filme e adormeceu no sofá. O ar condicionado murmurava e fazia acolhedora a sala. Só de madrugada, acordada pelo Thor, que exigia atenção e mimos, foi para a cama. Não sem antes, a estrela D´Alva já despontava no horizonte, colocar o Thor no quintal.
— Vai lá, você quer brincar, eu não quero, vai correr atrás dos micos e gambás, vai!
Foi para o seu quarto e adormeceu.
A manhã de domingo a encontrou ainda enrolada num leve lençol. Espreguiçou-se, foi ao banheiro, tomou uma chuveirada e vestiu um velho short desbotado e um top de algodão. Não pretendia sair de casa. Ligaria para a padaria, pediria uma cesta para o café da manhã. Havia se habituado a presentear-se aos domingos, “caixão não tem gavetas”. A casa comprada em Itaipu fora motivo de discussão entre os seus familiares. Que coisa! Morar só! Distante do Rio!
— Distante coisa nenhuma, chego ao centro mais rápido do que se morasse na Barra! Além disso, gosto do sossego!
Morava lá desde o fim do milênio e não trocava a sua casa por nada. O morro atrás é que trazia alguns problemas simpáticos. Como os saguis e micos a entrarem pela cozinha a fora. Problemas resolvidos quando colocou telas de arame nas janelas e adquiriu Bebê, um buldogue francês nada amistoso com os intrusos.

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