um mundo só seu
- Atualizado em 02/08/2018 13:41
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Um mundo só seu
Cândida Albernaz
O cabelo encarapinhado tinha uma cor indefinida, entre o amarelo e o encardido. Talvez fosse uma cabeça toda branca se a vida tivesse oferecido algo melhor.
Forrou a beirada da calçada com um papel pardo e ali colocou o prato de alumínio. Pegou a colher plástica de um rosa transparente, recolheu o feijão com arroz e cheirou. Balançou a cabeça em sinal de aprovação e comeu. Os pés para fora do meio fio calçavam uma sandália marrom com tiras grossas, lembrando um calçado masculino.
Quando um carro parou a seu lado, pegou outro pedaço de papel e tentou proteger da poeira cobrindo parcialmente a refeição.
Era uma mulher de estatura baixa, com olhos apertados como se sorrisse todo o tempo. Talvez o excesso de rugas em volta dele causasse o efeito.
Um rapaz ainda jovem se aproximou e perguntou se ela gostaria de ir para casa. Casa? Estou em casa. Não quer se sentar também? Se preferir, divido meu almoço com você. Não é muito, mas está gostoso.
Ele faz uma cara de repulsa e pede mais uma vez que ela o siga.
Não escutou ou fingiu que não. Pegou o prato e jogou na lixeira que estava na esquina. Voltou demonstrando estranheza que o rapaz estivesse ali ainda.
Abaixou sem dificuldade, limpou a colher no papel que usara antes e guardou na sacola plástica que havia deixado ao lado.
Olhou para ele e disse que precisava de paz. E é na rua que vai conseguir? Como uma mendiga?
Ela sorriu de um jeito conformado e saiu andando.
Tentou segurar seu braço, mas como uma força que não parecia ter, soltou-se dele.
O rapaz desistiu e foi para o outro lado da rua. Parou, encostou o corpo no muro de uma casa e ficou olhando. Notou que ela resmungava baixinho. Sabia o que falava: muxoxos e palavrões contra ele.
Sempre que a mãe tinha essas crises, ninguém conseguia segurar. Ia para a rua odiando tudo e todos dentro de casa. Então ele ou a irmã se revezavam na vigília. Não costumava durar muito porque arranjavam um jeito de colocar, enquanto ela se distraía, um calmante na bebida que tomava.
Fora internada algumas vezes, mas voltava tão triste e abatida que resolveram não fazer mais.
Ela foi mudando aos poucos e não se deram conta, ou a importância necessária, até a primeira escapada.
Procuraram pela mãe como loucos e a encontraram com mais duas pessoas, deitada num chão sujo e dividindo o cobertor de alguém.
O pai havia morrido há alguns anos, e na mesma época perdera um irmão em um acidente. A mãe, apesar do sofrimento, continuou a levar a vida adiante. Transformou-se numa mulher triste, quieta, de poucas palavras.
Ainda na calçada oposta, observava enquanto ela conversava com um e outro que passava, rindo sozinha quando imaginava ver ou ouvir algo divertido.
Estava cansado e pensou que desta vez a manteria por um bom tempo à base de remédios. Com eles ela ficaria deitada ou dormindo mais. Não suportava quando a via com aquele aspecto de demência, mas tinha medo de perdê-la para sempre um dia.
Parece que vai parar na praça agora. Deve sentar um pouco. Talvez seja a chance para aproximar e colocar o sedativo. Poderia falar com ela novamente, pois tinha a certeza de que nem mesmo lembraria que estivera com ele há pouco.
Viu que havia uma lanchonete ali perto. Compraria um sorvete e misturaria o medicamento. Nunca vira a mãe recusar um sorvete. Sempre gostara. Com ou sem crise.
Quando chegou perto e ofereceu a ela, imaginou ver um pequeno brilho em seus olhos e a boca abriu com um enorme sorriso. Como uma criança gulosa devorou aquele creme gelado.
Não demorou muito para que ela recostasse a cabeça em seu ombro e se deixasse levar.
 
 

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".