nem sempre vale a pena recordar
- Atualizado em 26/07/2018 10:09

 
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Nem sempre vale a pena recordar
Cândida Albernaz
Resolveu sentar na calçada para descansar um pouco. Andou o dia inteiro e nem parou para comer. Retirou do bolso da saia preta e larga demais para o corpo que possuía um pequeno embrulho. Foi abrindo o papel devagar, de onde tirou um pedaço de pão com linguiça. Mordeu com vontade. Um pouco duro para os dentes que sobraram em sua boca. A garota de olhos azuis da padaria foi quem deu a ela. De vez em quando ela preparava alguma coisa que a alimentava. Gostava de conversar também. Fazer perguntas.
Hoje contou sobre a casa bonita em que morava quando era jovem numa outra cidade com o marido e as duas filhas. Não era grande, mas o bairro onde residia tinha muitas árvores e uma praça para onde levava as meninas. Só o marido conhecia esta cidade onde estava agora vivendo. Ele tinha negócios aqui. E um apartamento também.
Tirou mais um pedaço do sanduíche. Mastigava devagar e com dificuldade.
A garota costumava pedir que contasse alguma parte de sua vida. Nem sempre podia fazer isso, porque não lembrava. A mente fugia e as ideias ficavam fora de ordem.
Suas filhas eram louras como ela e gostavam de correr entre os brinquedos da pracinha. Tinham cinco e seis anos na época. Riam tanto as duas e brigavam também, porque criança adora ter ciúme uma da outra nos desejos mais bobos.
Estava pensando em ficar por ali mesmo esta noite. Mais tarde alguém passaria e serviria uma sopa morninha.
O marido vivia viajando a trabalho. Sua família e a dele, eram do norte e desde que se casaram e se mudaram, não os vira. Falta de tempo dela, falta de dinheiro deles... Os anos passaram e não percebeu.
Vivia para as filhas e para aquele homem que escolheu. Não trabalhava, ele não permitia.
Guardou o restante que sobrou no mesmo papel, fechou direitinho e enfiou no bolso outra vez. Amanhã podia precisar. Estava com sede. Levantou-se e foi até a porta da loja que havia ali perto. Pediu um copo de água à funcionária, que depois de resmungar qualquer coisa foi pegar. “Pode levar o copo. E não fique aqui na frente.” Voltou para onde estava e sentou. Quando a loja fechasse, se acomodaria melhor sob a marquise.
Um dia, o marido chegou com um carro novo e mandou que as três se vestissem. Iam sair. Gostava quando ele as levava para passear perto da praia. O mar tinha uma beleza e uma força que a deixava deslumbrada sempre que via. Bom de verdade era quando, no domingo, pisavam na areia e podiam mergulhar na água gelada. Virava criança junto com as filhas. Ele ficava sentado sob o guarda sol olhando-as. Depois entrava sozinho no mar sem dar muita atenção às três. Notara que ele falava e ria cada vez menos.
Pronto. Fecharam a loja. Poderia se acomodar melhor nos degraus. A funcionária passou por ela e deu boa noite. Respondeu com um sorriso de dentes falhados.
Alguns dias pensava mais, como hoje. Em outros, só olhava em volta, com a cabeça oca de lembranças.
Nunca viera com o marido àquela cidade. No dia em que desembarcou de um ônibus ali, estava sozinha.
Não gostava muito quando esta parte da vida enchia sua cabeça. Ficava triste.
Na sacola com que andava para cima e para baixo pendurada no ombro, tinha uma colcha fina e uma almofada bem pequena que fazia de travesseiro. Um pente também, porque adorava pentear os cabelos. E só. Antes carregava coisas que as pessoas davam ou encontrava pela rua. Jogou tudo fora. Pesava.
Não percebeu nada antes. Confiava. Ele pediu que fosse ao supermercado enquanto ficava com as crianças. Uma lista grande. Disse que a pegaria de carro para levar as compras. Esperou por uma hora mais ou menos. Deixou tudo lá mesmo e avisou que voltaria para pegar.
Em casa, todos haviam saído. Imaginou um desencontro entre eles. Esperou. E continuou esperando. Dois dias depois, não entendia o que acontecera. Fora a polícia e prometeram procurar por eles. Naquela semana esteve várias vezes na delegacia. Sem notícias.
Num desses dias em que retornava a casa, encontrou pessoas estranhas dentro dela. Tinham a chave e anunciaram que a haviam comprado e a ocupariam. Retirasse logo tudo o que fosse pessoal porque queriam o imóvel livre no dia seguinte. O prazo dado ao antigo proprietário vencera. Tentou procurar ajuda, o dinheiro que tinha mal dava para comer. Na firma onde o marido trabalhava como representante de remédios, disseram que pedira demissão. E não, não sabiam informar o paradeiro dele.
Papéis e papéis que assinara sem ler.
Resolveu ir à rodoviária. Tentaria a cidade onde ele falara sobre o apartamento que tinham. Talvez os encontrasse. Sabia o endereço, vira em sua gaveta e gravara.
Assim que chegou, foi à rua que conhecia apenas de nome. Tocou a campainha. Uma mulher com um lenço amarrado à cabeça abriu aporta. Perguntou pelo marido, disse seu nome, ou estaria no endereço errado?
“Não, foi este o senhor que nos vendeu o apartamento. Mudamos há um mês. Pagamos uma parte com dinheiro e demos nosso carro também. Juntávamos há algum tempo.”
Quando saiu dali, ficou andando pela cidade que desconhecia. Foi a primeira vez que sentou numa calçada. Foi a primeira vez que escorregou o corpo até que com a bolsa embaixo da cabeça, dormiu sob uma marquise.
Quando a mente voltava como hoje, sentia o corpo inteiro doer. Continuaria procurando amanhã... Se ainda lembrasse.
A moça da sopa estava chegando...
 
 
 
 

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".