com ela seria diferente
- Atualizado em 27/03/2018 08:07
 
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Com ela seria diferente
Cândida Albernaz
O casaco rosa em tom forte contrastava com a pele negra. Os olhos levemente puxados tinham uma vivacidade que pareciam trazer brilho a todo o resto. Na mão direita, empurrava uma bicicleta vermelha com a pintura gasta. Caminhando à beira do asfalto, ignorava os olhares que provocava e o perigo dos carros que transitavam.
A amiga devia estar impaciente. Combinara com Gislane ficar com o filho dela por algumas horas. Adorava criança e esperava ter os seus um dia. Dois. Queria um casal, mas Deus é quem sabe, é claro. Tivessem saúde, o principal.
Mal pegou o menino, ela saiu correndo dizendo estar atrasada.
As duas têm dezessete anos e se conhecem desde criança. São como irmãs. Sua mãe tinha fartura de leite naqueles peitos tão grandes que pareciam dois travesseiros, e amamentou a amiga. Tia Dalva era fraca e quando a primeira filha nasceu, bateu uma tristeza nela e o leite secou. Não conseguiu tomar conta da menina. Sua mãe, que nunca viu chorar nem umaveizinha, cuidou das duas.
Agora é ela quem ajuda com o filho da amiga. Gosta daquele garoto de três anos que é seu afilhado. Ele é tranquilo e não dá trabalho. A amiga sim, é meio maluca e avoada. Quando começou a namorar o pai dele, não faltou quem avisasse como era: mulherengo, gostava de emprenhar garotas novas, vendia bagulhos para os caras lá de cima, etc, etc. Não ouviu ninguém, com ela seria diferente. Não foi. Depois de anos de coças esporádicas e uma criança na barriga, o cara se mandou porque se encantou com outra.
Ficou triste a boba, sem conseguir enxergar que agora talvez tivesse chance de consertar a vida. É evidente que com um filho aos catorze anos, seria muito mais complicado. Sabia também que podia contar com ela, mesmo que não fosse grande coisa, estariam juntas.
De tia Dalva, nunca pôde esperar nada. Depois que Gislane nasceu, vieram mais dois e a cada vez ela tinha nova crise e permanecia sem saúde o suficiente para cuidar deles.
Em suas conversas, a amiga fala que não entende como o pai permitiu que sua mãe engravidasse tantas vezes se não podia dar atenção aos filhos. Não ouvira falar sobre preservativo? Aliás, ela pensa que Gislane também não ouviu a respeito.
Hoje em dia, Dalva endoidou de vez e vive zanzando para lá e para cá, sem falar coisa com coisa. O marido é um santo, tem a maior paciência com ela. Apesar de parecer que a convivência é horrível, nunca o ouviu falar mais alto.
Como no dia em que ele estava lavando o carro na frente de casa e ela resolveu ajudar. Entrou, pegou um balde, e antes que alguém percebesse, virou o que tinha dentro em cima do carro. Na mesma hora um líquido branco escorreu até cobrir o farol do lado esquerdo. Não!!! Todos gritaram na hora, mas o estrago estava feito.
Ela explicou que jogara a tinta que estava em cima do armário, para o carro ficar clarinho. Por quê? Não gostava de branco? Que pena, se soubesse teria tentado com outra cor.
Ele segurou em seu braço e quando notou que chorava, pediu que ficasse calma. Daria um jeito. Ela sentou na varanda e ficou parada olhando para eles.
O melhor era levar para a oficina no dia seguinte.
Se fosse o pai dela..., mas também sua mãe não era doida como tia Dalva.
Gislane está demorando. Foi fazer uma entrevista, pois precisa trabalhar.
Pegou o afilhado no colo e foi até o portão. Nem sinal.
Ver o que a amiga tem passado serviu para decidir que não deixaria que acontecesse nada semelhante com ela. Não queria saber de namorado por enquanto. Faria faculdade no próximo ano e além de estudar, trabalhava para isso. Era vendedora numa loja de perfumes. Sabia que o pai não podia pagar. Seu sonho sempre foi ser professora, ensinar, e tinha certeza de que realizaria.
O menino dormiu. Voltou ao portão e viu a amiga descendo do ônibus.
- E então, conseguiu?
Gislane começou a chorar.
- O que houve?
E ela despejou que não era entrevista para trabalho nenhum. Queria tirar a criança que esperava, mas não teve coragem.
- Grávida de novo? De quem?
E o que isso importa? Sua vida tinha acabado de vez.
- Por que não contou antes? Sabia que não deixaria que tirasse. E agora?
Choraram as duas. Não sabia o que dizer, só apertou mais forte os braços em torno da amiga. Sentiu um gosto ruim na boca.
Com ela ia ser diferente, prometeu a si mesma.

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".