Nova Base Comum Curricular: quais contribuições trará à formação da cidadania? (final)
Vilmar Rangel - Atualizado em 15/02/2018 18:02
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Em oportuno artigo publicado neste jornal em 19-5-2016, o médico e professor Nélio Artiles Freitas expressava preocupação com as primeiras diretrizes divulgadas pelo Ministério da Educação para montar a Base Comum Curricular, prevista no Plano Nacional de Educação, de 2014. No seu texto, o articulista relacionava os direitos e objetivos de aprendizagem relativos a quatro áreas do conhecimento: ciências da natureza, ciências humanas, linguagens e matemática, com “seus respectivos componentes curriculares para todas as etapas da educação básica”. Após relacionar os países que passaram por experiência similar, informou ser a “progressão de conceitos-chave das disciplinas o fundamento central do trabalho”, que poderia ser traduzido na constatação do que cada aluno precisaria ter aprendido ao fim de cada ciclo. Neste caso, o nível de exigência deveria ser alto, o que não teria ocorrido com o projeto brasileiro.
Ressaltava então o professor Nélio que, não obstante ser atual o conceito de progressão do ensino, ele “estaria bem distante das metodologias das escolas brasileiras. E informava sobre o percentual conhecido de retenção de conhecimentos pelos alunos: “apenas 10% do que escutou ou ouviu, 20% do que viu e talvez cerca de 40% do que fez. Mas certamente absorveria mais de 80% se usasse o que aprendeu com um objetivo claro no desenvolvimento de um conhecimento”. De qual quadro se deduz como ideal que todas as escolas deveriam, ao final de cada período, “submeter seus alunos a uma avaliação global, que envolvesse não só os conteúdos, mas a sua aplicabilidade na vida daqueles futuros cidadãos”. Nessa análise seriam observados ganhos “em raciocínio, destreza em resoluções de problemas comuns, postura e determinadas habilidades básicas para a vida neste país tão conturbado”, como ações ligadas ao meio ambiente e, sobretudo, às chamadas relações humanas.
No âmbito das relações humanas (consideradas para além da simples cordialidade), e já por varias décadas, constata-se que o ensino hoje classificado como fundamental e médio foi reduzindo rápida e radicalmente os preceitos básicos dessa área, onde gerações que nos antecederam absorviam com clareza e compromisso os valores da ética, da moral, do civismo e da civilidade, indispensáveis à formação da cidadania plena. Tais conhecimentos, se hoje fossem novamente proporcionados aos pré-adolescentes e jovens entre os 15 e 18 anos, em muito os ajudariam a distinguir, repudiar e combater atitudes e consequências oriundas de poluição, redução e mau uso de fontes naturais, violência domiciliar urbana e no campo, corrupção, intolerância e todo um repertório de condutas reprováveis, que contrastam com tantas evoluções e conquistas vigentes em pleno século 21.
Coincidentemente, na mesma página da mesma edição da Folha, a escritora Ana Regina Caminha Braga expõe em “Mudanças na educação em 20 anos” suas ideias no âmbito da necessidade de reintroduzir, desde as classes mais iniciais da escola, ensinamentos focados nos princípios básicos do bom comportamento humano. Citando a antiga Educação Moral e Cívica (que em determinado momento foi direcionada pelo regime militar para privilegiar “conceitos” de segurança nacional), ela indaga a um amigo se “essas disciplinas não poderiam retornar às escolas com outra perspectiva, contemplando os direitos e deveres do cidadão, a coletividade e outros fatores”? E lança uma dúvida: “Ou temos esta abordagem com um contexto diferenciado”? Mais adiante, a articulista afirma que “algumas disciplinas eram norteadoras de uma formação de respeito, valores, limites e cidadania”. E arrisca: “Parece-me que antigamente a escola tinha um conhecimento ou interesse mais enfático nestas perspectivas”, oriundas talvez “de sujeitos esclarecidos, com opinião própria”.
Ao longo do seu texto, a escritora registra preocupação com as crianças de hoje, que podem ser prejudicadas com “lacunas nas relações interpessoais”. Lembra que “a criança, tempos atrás, era vista como uma tábua rasa, mas hoje elas chegam à sociedade com um grande número de informações, além de sempre abertas às coisas novas. Como educadores, precisamos motivar seu crescimento intelectual de maneira eficaz, com princípios e valoras que transformem um pouco o mundo atual com suas ações”. E segue abordando a Educação Infantil, onde “as atividades precisam de peso avaliativo, de produção, ou seja, que mostrem aos pais o conteúdo contemplado. No Fundamental, as matérias se multiplicam e a criança já sente a responsabilidade de dar conta dos conteúdos. No ensino médio, a “enxurrada” de conteúdo é sem limites. A criança, muitas vezes, armazena tudo para os primeiros minutos do vestibular ou para uma prova”. O texto avança para outras abordagens, como a do aluno universitário, que armazena “conteúdos automatizados” que talvez não saiba utilizar. E levanta a questão de “abrirmos espaço para trabalhar com os alunos as questões de cidadania, civilização, respeito ao próximo” etc.
Se fora da educação não existem perspectivas de conquista de uma cidadania que se estruture em civismo, civilidade e compromisso com padrões éticos e morais, há que se persistir na luta pela reinserção de disciplinas cujo conteúdo sirvam de base efetiva para tão urgentes objetivos. Por outro lado, a Constituição do país dispõe, em seu artigo 205, que “A educação, direito e de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Ocorre que, com raras e heroicas exceções, grandes bolsões da família brasileira não dispõem de meios para exercer essa colaboração, pois se acham desestruturadas por míseros salários ou pelo desemprego, pela violência doméstica e das ruas, assim como pelo acelerado desvirtuamento dos costumes, que prejudicam crianças e jovens, sujeitando-os a influências deletérias.
Percebemos, portanto, que a ausência (por longos anos e provavelmente em todos os quadrantes do país) dessas práticas e disciplinas nos currículos de vários níveis (com noções importantes de antropologia, sociologia, história, filosofia e o auxílio estratégico da pedagogia), ganha cada vez mais espaço na preocupação dos que lutam por uma correta formação de nossa juventude, no presente e no futuro. Enfim, só nos resta aguardar a divulgação da íntegra da Nova Base Comum Curricular, homologada há poucos meses, para uma avaliação mais ampla, que nos permita conhecer quais contribuições efetivas e indispensáveis ela trará à formação da cidadania, padrão de comportamento que tem o poder de transformar a sociedade aqui somando a cidade, sua gente, sua história , tornando-a mais humana e socialmente mais justa e responsável.
Em tempo: por ocasião do I Congresso Brasileiro de Academias de Letras e Artes, promovido em julho de 2017 em Niterói (iniciativa da Academia Fluminense de Letras em prol da criação de uma Federação dessas instituições), a ACL contribuiu com indicações às mesas de debates em três áreas: Educação, Cultura e Ética (onde é proposta a adoção regular da Educação Patrimonial), Como estimular a leitura/Valorização dos Livros, e uma recomendação no sentido de que os Conselhos Municipais de Cultura e Patrimônio sejam cobrados para que respeitem a alternância de direção, entre o poder público e a sociedade.

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