Livro desnuda Marquês de Sade
Ronal Bessane - Atualizado em 11/01/2018 19:07
É uma surpresa abrir a crocante e cremosa edição das “Novelas Trágicas” do Marquês de Sade (Carambaia, 327 págs.). Com capa em acetato vermelho, que faz um curioso efeito quando sobreposta às belas ilustrações de Zansky, o projeto gráfico de Luciana Facchini embala um texto em tudo diferente àquela sensação de horror com que saímos da pasoliniana adaptação do inferno de Sade em “Salò”. Nada de torturas com vidro moído, estupro grupal, escalpelamentos ou degustação de matéria fecal. Nada das perversões da lógica ou das repetições de orgias em “120 Dias de Sodoma” (cuja edição da Iluminuras infelizmente está esgotada). Temos aqui um Sade descafeinado e desidratado — mas não menos desnaturado. Nas “Novelas Trágicas”, suas perversões residem no âmbito da recepção do texto. Portanto requerem contexto para serem lidas: ao pé da letra, soam como contos da carochinha. Trata-se de outra armadilha deste escritor radicalmente libertário, cuja vida e obra assombrosas influenciaram do surrealismo ao estruturalismo, do existencialismo à psicanálise, da literatura à política, da sociedade de consumo à cultura pop.
Relembremos: com três décadas atrás das grades ao longo do século 18, Donatien Alphonse François de Sade teve condições ideais para escrever milhares de páginas (a maioria censurada em sua época, várias perdidas para sempre). O sonho de todo escritor: silêncio, zero internet, tempo para refletir, isolamento, muitos personagens por perto pedindo para virar ficção. Se não teve material físico para divulgar suas ideias, quando proibido de usar papel, não faz mal: Sade escreveu com vinho, sangue e até cocô nas paredes de sua cela (cenas recriadas de modo indelével em “Quills”, ótima biografia dirigida por Philip Kaufman, com Geoffrey Rush como o libertino).
Pois foi justo nos conturbados 1787 e 1788 que Sade anotou estas “Novelas Trágicas”. O aristocrata achava-se no xilindró devido à infatigável atividade lúbrica nos anos anteriores: farta sodomia com amigos, rituais cruéis praticados com servas e servos (incluindo venenos, cordas e cera quente), acusações de pedofilia e outras atitudes indefensáveis. Na casa de Sade, assédio sexual era pinto: perto de seus crimes, Harvey Weinstein e Kevin Spacey seriam anjos barrocos. Mas a Paris do século 18 não conhecia os tribunais das redes sociais, então o marquês foi lançado às masmorras da Bastilha. Ao mesmo tempo em que se ocupava de escrever os longos romances “Sodoma” e “Justine” (este, ao ser publicado, lhe renderia mais uma década de cadeia), Sade embebia narrativas breves em gordurosa literatura gótica, de influência inglesa e fundo carola, cujos enredos afirmavam que o primado do desejo sobre a razão, dos vícios sobre as virtudes e do Mal sobre o Bem só conduzem à ruína. Guardadas as proporções, seria mais ou menos como se Reinaldo Moraes, chaveado num presídio de segurança máxima por conta de “Pornopopeia”, gastasse os dias digitando manuais de empreendedorismo e auto-ajuda.
Tome-se a mais interessante das cinco narrativas deste livro, Florville e Corval e o Fatalismo. Corval, um riquíssimo viúvo que não vê os filhos há anos, procura uma boa mulher para gozar a solitária velhice. Surge Florville, uma trintona linda porém de triste passado. Órfã criada na casa de um magnata, é enviada para a casa de uma aristocrata safada, cai na lábia de um jovem e engravida. O rapaz foge com o filho dos dois e Florville mergulha em depressão; vai morar com outra aristocrata, esta temente a Deus. Passam-se 20 anos e Florville de novo se envolve com um adolescente, que a estupra; ao tentar fugir dele, acaba o matando. Mesmo com todos esses B.Os nas costas, Florville encanta Corval. Até que, anos depois, reaparece o filho que Corval nunca viu: é o mesmo jovem que seduziu Florville. Ao vê-la, conta que Florville matou o filho dos dois, sem saber. Com tanta desgraceira rocambolesca, Florville se mata. Moral sádica da história: transar com o irmão, o filho e o pai não faz bem à saúde. “Só na obscuridade do túmulo o homem encontra a calma que a maldade de seus semelhantes, a desordem de suas paixões e a fatalidade de sua sorte lhes recusarão sobre a terra”, conclui o Marquês, e, lendo-o à sombra de seus livros mais famosos, já o imaginamos com um perverso sorriso de Frank Underwood.
Além do primoroso posfácio do tradutor André Luiz de Barros, que elucida tramas e trapaças dessas exageradas novelas góticas criadas num moralismo tão falso que, paradoxalmente, acabam revelando a hipocrisia da sociedade, a edição traz um impressionante ensaio de Sade sobre a história do romance. Aí revela-se tanto o talento literário do Divino Marquês quanto sua vasta erudição, bem como ideias arrojadas: elege o Dom Quixote como o melhor romance já escrito, propõe o Egito como berço da narrativa romanesca (entre outras espertas releituras da História) e capciosas lições de como escrever. Não puxe o saco dos leitores; não seja verdadeiro, mas verossímil; seja fiel a seus temas; jamais procure o sucesso. “Ninguém te obriga a exercer essa profissão (…) Não a adotes como auxílio à pobreza (…) Melhor fazer sapatos do que escrever livros.” Ao contrário das narrativas edulcoradas das “Novelas Trágicas”, a teoria de Sade sobre o romance é coerente com as tendências transgressivas do mais libertário dos escritores.
*Ronaldo Bressane é escritor e jornalista, autor de “Escalpo” (ed. Reformatório), entre outros livros

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