Campos dos Goytacazes,  23/11/2017 14:36

Folha Política
23/11/2017 14:36 - Atualizado em 23/11/2017 14:05
De Itamar às Jornadas de Junho
Aluysio Abreu Barbosa 04/11/2017 18:32 - Atualizado em 07/11/2017 14:34
Jornadas de Junho
Jornadas de Junho / Divulgação
Se veio no ano seguinte às grandes manifestações de rua das “Diretas Já”, a redemocratização brasileira da Nova República, a partir de 1985, não trouxe solução ao pior problema legado dos militares, após 21 anos de ditadura: a inflação. Sete anos depois, em 29 de setembro de 1992, Itamar Franco assumiu a presidência com o impeachment de Fernando Collor de Mello, que ganhou corpo nas ruas dos “caras pintadas”. A inflação fecharia aquele ano em 1.100%. Em 1993, mais que dobraria para 2.708,55%. Ainda assim, talvez pela ressaca das manifestações que ajudaram a derrubar Collor, os 15 meses de governo Itamar não foram marcados por grandes mobilizações populares.
Jornadas de Junho
Jornadas de Junho / Divulgação
Após trocar várias vezes os ministros da economia, Itamar nomeou Fernando Henrique Cardoso ao ministério da Fazenda, em 19 de maio de 1993. Sociólogo, ele reuniu a equipe de economistas que elaborou o Plano Real, iniciado em 27 de fevereiro de 1994, a despeito da oposição do PT, das centrais sindicais e da Federação da Indústrias de São Paulo (Fiesp). A nova moeda entrou em circulação em 1º de julho daquele ano. Até este mês, a inflação acumulada já era de 815,60%, enquanto a primeira registrada depois foi de 6,08%, mínima recorde.
Com a estabilização da economia, Fernando Henrique saiu da Fazenda para poder se candidatar em 1994 à presidência. Apesar de Lula iniciar a corrida como favorito, o tucano bateu ele e todos os demais concorrentes ainda no primeiro turno.
Na primeira gestão FHC, o protesto de rua de maior vulto foi a marcha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Brasília. Em 17 de abril de 1997, cerca de 30 mil pessoas participaram do ato marcado para lembrar o aniversário de um ano do massacre dos sem-terra em Eldorado dos Carajás (PA). Políticos de oposição como Leonel Brizola (PDT) e o então deputado federal José Dirceu (PT) aproveitaram para protestar contra as privatizações e a política econômica “neoliberal” do governo federal.
Diante da nova realidade econômica, os protestos não tiveram eco na sociedade. Mesmo acusado pela compra de votos de deputados para aprovar a emenda constitucional que possibilitou a reeleição, em 1997, o presidente venceu nas urnas no ano seguinte, novamente em turno único.
Manifestantes em confronto com a PM
Manifestantes em confronto com a PM / Divulgação
Mas o segundo governo FHC teria problemas com a crise econômica dos Tigres Asiáticos de 1997, a desvalorização do Real, os juros altos, o desemprego na casa dos 10 milhões e o drama nacional do apagão e do racionamento de energia. O PT aproveitou a oportunidade para testar seu domínio da esquerda e das ruas brasileiras. Em 26 de agosto de 1999, promoveu a “Marcha dos Cem Mil” em Brasília, onde liderou os partidos de oposição, além de seus braços na União Nacional dos Estudantes (UNE, protagonista do impeachment de Collor), na Central Única dos Trabalhadores (CUT) e no MST.
Após o protesto, que mereceu destaque em todos os telejornais, Lula declarou: “Que FHC e sua corja nunca mais ousem duvidar da capacidade de organização da sociedade”.
O “Fora FHC”, no entanto, não foi além disso. Em sua quarta tentativa, Lula finalmente foi eleito presidente em 2002, após bater no segundo turno José Serra (PSDB), candidato do governo. A genuína emoção coletiva da sua posse, que contagiou até o opositor que lhe passou a faixa presidencial, só teve paralelo na popularidade do seu governo.
Revelado em maio de 2005, pela mesma revista Veja que denunciara Collor em 1992, o escândalo do “Mensalão”, como ficou conhecido o esquema de desvio de dinheiro público para compra da base parlamentar, abalou o presidente e correligionários, com alguns saindo do PT para o Psol, fundado por dissidentes em 2004. Também causou a saída de José Dirceu do ministério da Casa Civil, como depois geraria sua cassação do mandato de deputado federal, sua condenação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e sua prisão.
Mas com a economia indo bem, capitaneada pelo petista Antonio Palocci na Fazenda e o ex-tucano Henrique Meirelles no Banco Central, não houve protestos nas ruas. Os movimentos sociais, que sempre caminharam junto com o PT, pareciam acomodados após virarem poder com Lula:
— Ancorado paradoxalmente no pragmatismo político, na “desideologização” da vida, na burocratização centralizadora, no liberalismo econômico/social e na liderança carismática, articulados ao presidencialismo de coalizão e suas mazelas, o lulismo empreendeu um amálgama no mosaico cultural e social brasileiros. As pautas sociais foram fragmentadas sem nenhuma articulação e posicionamento político-social mais ampliado. O sindicalismo mergulhou no oficialismo, nas lutas por cargos e espaços de controle político-financeiro, reduzindo sua capacidade de inovação, de crítica e de autocrítica. O PT crítico, histórico, não dominado pela corrente hegemônica lulista, é sufocado com o descolamento de sua criatura — analisa a historiadora Guiomar Valdez, professora do Instituto Federal Fluminense (IFF).
A popularidade da “criatura” foi confirmada em sua reeleição em 2006, após vencer Geraldo Alckmin (PSDB) no segundo turno. Mesmo com a evolução das investigações do Mensalão, o carisma de Lula junto à população permanecia inalterado.
  • "Marcha dos 100 mil" em Brasília

  • "Marcha dos 100 mil" em Brasília

Em setembro de 2008, com o estouro da bolha imobiliária nos EUA, veio a crise econômica mundial, mais grave desde a Grande Depressão de 1929. O presidente reeleito a chamou de “marolinha”. Mas seu espraiar levou o governo a uma guinada radical naquilo que vinha dando certo desde Itamar: lançada a “Nova Matriz Econômica”, os bancos estatais, sobretudo o BNDES, passariam a ser usados como principais ferramentas de expansão ao crédito.
Pelo menos no início, deu certo. Sem contestação das ruas também no segundo mandato, Lula pôs à prova sua popularidade em 2010, quando elegeu Dilma Rousseff (PT) a primeira mulher presidente do Brasil. Ex-ministra da Casa Civil, ela nunca havia ocupado nenhum cargo eletivo antes daquele pleito. Bem mais experiente, Serra acabou derrotado mais uma vez no segundo turno de 31 de outubro daquele ano.
Um mês e meio mais tarde, outro fato internacional iria influenciar os acontecimentos brasileiros. De 18 de dezembro de 2010 a meados de 2012, a “Primavera Árabe” começou na Tunísia para tomar todo o Norte da África e o Oriente Médio. Diante das demandas reprimidas por sociedades teocráticas e governos ditatoriais, foi a primeira grande mobilização de massas da história construída não em sindicatos, quartéis militares, movimentos religiosos ou nenhuma organização de classe, mas através das redes sociais.
Em 2013, o mesmo tipo de mobilização a partir das redes sociais levou o Brasil àquilo que ficaria mais conhecido como “Jornadas de Junho”. Entre os dois fenômenos próximos em tempo e aproximados pela internet em espaço, a analogia é do sociólogo e cientista político George Gomes Coutinho, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) de Campos:
— Os métodos de mobilização, até então jamais vistos no cenário tupiniquim, foram depois largamente utilizados. Inclusive há semelhanças de métodos com o que ocorreu aqui e na “Primavera Árabe”: redes sociais, novas formas dinâmicas de interação. A chamada revolução informacional, que se potencializa a partir do final da década de 1990, já inclui novas formas de comunicação e interação na sociedade. Ao mesmo tempo tivemos os anos do lulismo neste século XXI, onde os atores tradicionais da esquerda ingressaram nas instituições e tanto passaram a ser “vidraça” quanto tiveram sua atuação contestatória consideravelmente diminuída. Afinal, movimentos e partidos tornaram-se governo.
Cabruncos livres
Cabruncos livres / Folha da Manhã
— As manifestações no espaço público e as mobilizações políticas colocadas em práticas no século XXI apontam para algumas novidades que talvez as “Jornadas de Junho” sejam o melhor exemplo, uma vez que sua existência não dependeu dos mecanismos de organização que tradicionalmente marcaram a ação política no país. O advento e a popularização das redes sociais na última década, sobretudo em nosso país, e o surgimento de uma nova geração que vem, de várias maneiras, negando as formas mais convencionais de se “fazer política”, tais como partidos organizados, democracia representativa e sindicatos, são boas pistas para pensarmos a política atualmente. A efervescência das redes sociais transbordou para novas performances políticas, que nos últimos tempos têm ganhado as ruas — segue na mesma linha de interpretação o antropólogo José Colaço, também professor da UFF-Campos.
Na verdade, as primeiras manifestações aconteceram ainda em 2012, no Rio de Janeiro e em Natal. Inicialmente foram estimuladas por partidos mais à esquerda, como a dissidência petista do Psol, e tinham como alvo apenas o aumento nas tarifas do transporte público. Quando 2013 chegou, protestos no primeiro semestre foram registrados em Porto Alegre, Natal e Goiânia. Todos eram formados majoritariamente por jovens, como foram os “cara pintadas” que 21 anos antes haviam derrubado Collor.
O movimento de 2013 ganharia dimensão nacional no mês que o batizou. Em 6, 7 e 11 de junho, as manifestações em São Paulo foram crescendo gradualmente, até se espalharem no dia 13 por diversas outras cidades brasileiras. A violência da PM paulista na repressão a este protesto fez com que ganhasse maior atenção da mídia e simpatia popular, depois perdida com a radicalização dos black-blocks. No dia 17, cerca de 300 mil pessoas saíram às ruas de 12 cidades brasileiras.
Nos cinco dias seguintes, não houve nenhum sem manifestações pelo país. No dia 20, o pico de 1,4 milhão de participantes seria contabilizado em mais de 120 cidades. Entre elas, Campos, onde o movimento “Cabruncos Livres” reuniu mais de 4 mil pessoas numa passeata da Praça São Salvador à Prefeitura, com palavras de ordem entoadas contra o governo Rosinha Garotinho (PR). Antes, em frente à Câmara, um advogado do grupo rosáceo tentou subir num trio elétrico e foi forçado a descer pelos jovens, que gritaram: “É o advogado do Garotinho”.
Com a redução da tarifa do transporte público atendida em diversas cidades, a pauta de reivindicações se ampliou. Passou a ser também contra a PEC 37, que queria impedir o Ministério Público de investigar; contra o polêmico projeto da “cura gay”, do pastor evangélico e deputado federal João Campos (PSDB/GO); contra os gastos com a Copa das Confederações, em 2013, e a Copa do Mundo, em 2014; e contra a corrupção. Coincidentemente, em junho de 2013, começaria também a operação Lava Jato. Em artigo no jornal El País, o correspondente Juan Arias chamou os manifestantes de “filhos rebeldes de Dilma e Lula”.
Em pronunciamento pela TV no dia 21, Dilma saudou o “desejo da juventude de fazer o Brasil avançar”, mas condenou a violência e o vandalismo, que creditou a “uma pequena minoria”. A presidente garantiu: “A mensagem direta das ruas é pacífica e democrática. Ela reivindica o combate sistemático à corrupção e ao desvio de recursos públicos. Todos me conhecem: disso eu não abro mão”. Por sua vez, Lula diria só em 11 de agosto deste ano, novamente pré-candidato à presidência: “Nós nos precipitamos ao achar que 2013 foi uma coisa democrática”.
— No Brasil, depois de 1964, quando os setores conservadores foram às ruas apoiando o Golpe Civil-Militar, elas voltaram a se sentir à vontade para se manifestar após junho de 2013, quando explodiram as insatisfações com os serviços urbanos em São Paulo, uma vez que a resposta do Governo Dilma foi totalmente equivocada, alternando entre ouvidos moucos e disputa com as lideranças de novos movimentos e organizações urbanas. O PT não percebeu que ter aparelhado a administração pública com lideranças sindicais e de movimentos sociais esvaziou esses pilares da democracia e neutralizou a autonomia e independência tão necessárias aos mesmos — explica o sociólogo José Luis Vianna da Cruz, professor da UFF-Campos e da Cândido Mendes.
— Eu acho que 2013 foi a maior oportunidade perdida da esquerda brasileira. Eu acho difícil um grupo político se recompor depois de perder uma oportunidade daquele tamanho. O embate ideológico brasileiro, que estava recalcado, ele aparece de maneira muito forte. E vai para as ruas. Que era o lugar natural da política brasileira e sempre foi. A esquerda deveria estar à altura do que 2013 pedia. Era a crise da representação política, da imprensa, do sindicato, e uma consciência muito clara que o processo de desenvolvimento econômico tinha parado. Quando você ouvia “Eu quero escola padrão Fifa”, estava muito claro. Essas pessoas começaram a ter ascensão social. E a primeira coisa que elas fizeram foi tirar os filhos da escola pública e botar na escola privada. Vinte e quatro milhões de pessoas saíram do sistema público brasileiro para o privado. A segunda coisa que fizeram foi abrir mão do SUS e comprar um plano de saúde. A terceira coisa foi comprar um carro. Essas famílias foram corroídas por esses três gastos. Quando elas saem para pedir mais serviço, estava claro: esse processo econômico parou, paralisou — conclui o filósofo Vladimir Safatle, entre os principais intelectuais de esquerda do país e professor da Universidade de São Paulo (USP).

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    Jornadas de Junho / Divulgação
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    Com a estabilização da economia, Fernando Henrique saiu da Fazenda para poder se candidatar em 1994 à presidência. Apesar de Lula iniciar a corrida como favorito, o tucano bateu ele e todos os demais concorrentes ainda no primeiro turno.
    Na primeira gestão FHC, o protesto de rua de maior vulto foi a marcha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Brasília. Em 17 de abril de 1997, cerca de 30 mil pessoas participaram do ato marcado para lembrar o aniversário de um ano do massacre dos sem-terra em Eldorado dos Carajás (PA). Políticos de oposição como Leonel Brizola (PDT) e o então deputado federal José Dirceu (PT) aproveitaram para protestar contra as privatizações e a política econômica “neoliberal” do governo federal.
    Diante da nova realidade econômica, os protestos não tiveram eco na sociedade. Mesmo acusado pela compra de votos de deputados para aprovar a emenda constitucional que possibilitou a reeleição, em 1997, o presidente venceu nas urnas no ano seguinte, novamente em turno único.
    Manifestantes em confronto com a PM
    Manifestantes em confronto com a PM / Divulgação
    Mas o segundo governo FHC teria problemas com a crise econômica dos Tigres Asiáticos de 1997, a desvalorização do Real, os juros altos, o desemprego na casa dos 10 milhões e o drama nacional do apagão e do racionamento de energia. O PT aproveitou a oportunidade para testar seu domínio da esquerda e das ruas brasileiras. Em 26 de agosto de 1999, promoveu a “Marcha dos Cem Mil” em Brasília, onde liderou os partidos de oposição, além de seus braços na União Nacional dos Estudantes (UNE, protagonista do impeachment de Collor), na Central Única dos Trabalhadores (CUT) e no MST.
    Após o protesto, que mereceu destaque em todos os telejornais, Lula declarou: “Que FHC e sua corja nunca mais ousem duvidar da capacidade de organização da sociedade”.
    O “Fora FHC”, no entanto, não foi além disso. Em sua quarta tentativa, Lula finalmente foi eleito presidente em 2002, após bater no segundo turno José Serra (PSDB), candidato do governo. A genuína emoção coletiva da sua posse, que contagiou até o opositor que lhe passou a faixa presidencial, só teve paralelo na popularidade do seu governo.
    Revelado em maio de 2005, pela mesma revista Veja que denunciara Collor em 1992, o escândalo do “Mensalão”, como ficou conhecido o esquema de desvio de dinheiro público para compra da base parlamentar, abalou o presidente e correligionários, com alguns saindo do PT para o Psol, fundado por dissidentes em 2004. Também causou a saída de José Dirceu do ministério da Casa Civil, como depois geraria sua cassação do mandato de deputado federal, sua condenação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e sua prisão.
    Mas com a economia indo bem, capitaneada pelo petista Antonio Palocci na Fazenda e o ex-tucano Henrique Meirelles no Banco Central, não houve protestos nas ruas. Os movimentos sociais, que sempre caminharam junto com o PT, pareciam acomodados após virarem poder com Lula:
    — Ancorado paradoxalmente no pragmatismo político, na “desideologização” da vida, na burocratização centralizadora, no liberalismo econômico/social e na liderança carismática, articulados ao presidencialismo de coalizão e suas mazelas, o lulismo empreendeu um amálgama no mosaico cultural e social brasileiros. As pautas sociais foram fragmentadas sem nenhuma articulação e posicionamento político-social mais ampliado. O sindicalismo mergulhou no oficialismo, nas lutas por cargos e espaços de controle político-financeiro, reduzindo sua capacidade de inovação, de crítica e de autocrítica. O PT crítico, histórico, não dominado pela corrente hegemônica lulista, é sufocado com o descolamento de sua criatura — analisa a historiadora Guiomar Valdez, professora do Instituto Federal Fluminense (IFF).
    A popularidade da “criatura” foi confirmada em sua reeleição em 2006, após vencer Geraldo Alckmin (PSDB) no segundo turno. Mesmo com a evolução das investigações do Mensalão, o carisma de Lula junto à população permanecia inalterado.
    • "Marcha dos 100 mil" em Brasília

    • "Marcha dos 100 mil" em Brasília

    Em setembro de 2008, com o estouro da bolha imobiliária nos EUA, veio a crise econômica mundial, mais grave desde a Grande Depressão de 1929. O presidente reeleito a chamou de “marolinha”. Mas seu espraiar levou o governo a uma guinada radical naquilo que vinha dando certo desde Itamar: lançada a “Nova Matriz Econômica”, os bancos estatais, sobretudo o BNDES, passariam a ser usados como principais ferramentas de expansão ao crédito.
    Pelo menos no início, deu certo. Sem contestação das ruas também no segundo mandato, Lula pôs à prova sua popularidade em 2010, quando elegeu Dilma Rousseff (PT) a primeira mulher presidente do Brasil. Ex-ministra da Casa Civil, ela nunca havia ocupado nenhum cargo eletivo antes daquele pleito. Bem mais experiente, Serra acabou derrotado mais uma vez no segundo turno de 31 de outubro daquele ano.
    Um mês e meio mais tarde, outro fato internacional iria influenciar os acontecimentos brasileiros. De 18 de dezembro de 2010 a meados de 2012, a “Primavera Árabe” começou na Tunísia para tomar todo o Norte da África e o Oriente Médio. Diante das demandas reprimidas por sociedades teocráticas e governos ditatoriais, foi a primeira grande mobilização de massas da história construída não em sindicatos, quartéis militares, movimentos religiosos ou nenhuma organização de classe, mas através das redes sociais.
    Em 2013, o mesmo tipo de mobilização a partir das redes sociais levou o Brasil àquilo que ficaria mais conhecido como “Jornadas de Junho”. Entre os dois fenômenos próximos em tempo e aproximados pela internet em espaço, a analogia é do sociólogo e cientista político George Gomes Coutinho, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) de Campos:
    — Os métodos de mobilização, até então jamais vistos no cenário tupiniquim, foram depois largamente utilizados. Inclusive há semelhanças de métodos com o que ocorreu aqui e na “Primavera Árabe”: redes sociais, novas formas dinâmicas de interação. A chamada revolução informacional, que se potencializa a partir do final da década de 1990, já inclui novas formas de comunicação e interação na sociedade. Ao mesmo tempo tivemos os anos do lulismo neste século XXI, onde os atores tradicionais da esquerda ingressaram nas instituições e tanto passaram a ser “vidraça” quanto tiveram sua atuação contestatória consideravelmente diminuída. Afinal, movimentos e partidos tornaram-se governo.
    Cabruncos livres
    Cabruncos livres / Folha da Manhã
    — As manifestações no espaço público e as mobilizações políticas colocadas em práticas no século XXI apontam para algumas novidades que talvez as “Jornadas de Junho” sejam o melhor exemplo, uma vez que sua existência não dependeu dos mecanismos de organização que tradicionalmente marcaram a ação política no país. O advento e a popularização das redes sociais na última década, sobretudo em nosso país, e o surgimento de uma nova geração que vem, de várias maneiras, negando as formas mais convencionais de se “fazer política”, tais como partidos organizados, democracia representativa e sindicatos, são boas pistas para pensarmos a política atualmente. A efervescência das redes sociais transbordou para novas performances políticas, que nos últimos tempos têm ganhado as ruas — segue na mesma linha de interpretação o antropólogo José Colaço, também professor da UFF-Campos.
    Na verdade, as primeiras manifestações aconteceram ainda em 2012, no Rio de Janeiro e em Natal. Inicialmente foram estimuladas por partidos mais à esquerda, como a dissidência petista do Psol, e tinham como alvo apenas o aumento nas tarifas do transporte público. Quando 2013 chegou, protestos no primeiro semestre foram registrados em Porto Alegre, Natal e Goiânia. Todos eram formados majoritariamente por jovens, como foram os “cara pintadas” que 21 anos antes haviam derrubado Collor.
    O movimento de 2013 ganharia dimensão nacional no mês que o batizou. Em 6, 7 e 11 de junho, as manifestações em São Paulo foram crescendo gradualmente, até se espalharem no dia 13 por diversas outras cidades brasileiras. A violência da PM paulista na repressão a este protesto fez com que ganhasse maior atenção da mídia e simpatia popular, depois perdida com a radicalização dos black-blocks. No dia 17, cerca de 300 mil pessoas saíram às ruas de 12 cidades brasileiras.
    Nos cinco dias seguintes, não houve nenhum sem manifestações pelo país. No dia 20, o pico de 1,4 milhão de participantes seria contabilizado em mais de 120 cidades. Entre elas, Campos, onde o movimento “Cabruncos Livres” reuniu mais de 4 mil pessoas numa passeata da Praça São Salvador à Prefeitura, com palavras de ordem entoadas contra o governo Rosinha Garotinho (PR). Antes, em frente à Câmara, um advogado do grupo rosáceo tentou subir num trio elétrico e foi forçado a descer pelos jovens, que gritaram: “É o advogado do Garotinho”.
    Com a redução da tarifa do transporte público atendida em diversas cidades, a pauta de reivindicações se ampliou. Passou a ser também contra a PEC 37, que queria impedir o Ministério Público de investigar; contra o polêmico projeto da “cura gay”, do pastor evangélico e deputado federal João Campos (PSDB/GO); contra os gastos com a Copa das Confederações, em 2013, e a Copa do Mundo, em 2014; e contra a corrupção. Coincidentemente, em junho de 2013, começaria também a operação Lava Jato. Em artigo no jornal El País, o correspondente Juan Arias chamou os manifestantes de “filhos rebeldes de Dilma e Lula”.
    Em pronunciamento pela TV no dia 21, Dilma saudou o “desejo da juventude de fazer o Brasil avançar”, mas condenou a violência e o vandalismo, que creditou a “uma pequena minoria”. A presidente garantiu: “A mensagem direta das ruas é pacífica e democrática. Ela reivindica o combate sistemático à corrupção e ao desvio de recursos públicos. Todos me conhecem: disso eu não abro mão”. Por sua vez, Lula diria só em 11 de agosto deste ano, novamente pré-candidato à presidência: “Nós nos precipitamos ao achar que 2013 foi uma coisa democrática”.
    — No Brasil, depois de 1964, quando os setores conservadores foram às ruas apoiando o Golpe Civil-Militar, elas voltaram a se sentir à vontade para se manifestar após junho de 2013, quando explodiram as insatisfações com os serviços urbanos em São Paulo, uma vez que a resposta do Governo Dilma foi totalmente equivocada, alternando entre ouvidos moucos e disputa com as lideranças de novos movimentos e organizações urbanas. O PT não percebeu que ter aparelhado a administração pública com lideranças sindicais e de movimentos sociais esvaziou esses pilares da democracia e neutralizou a autonomia e independência tão necessárias aos mesmos — explica o sociólogo José Luis Vianna da Cruz, professor da UFF-Campos e da Cândido Mendes.
    — Eu acho que 2013 foi a maior oportunidade perdida da esquerda brasileira. Eu acho difícil um grupo político se recompor depois de perder uma oportunidade daquele tamanho. O embate ideológico brasileiro, que estava recalcado, ele aparece de maneira muito forte. E vai para as ruas. Que era o lugar natural da política brasileira e sempre foi. A esquerda deveria estar à altura do que 2013 pedia. Era a crise da representação política, da imprensa, do sindicato, e uma consciência muito clara que o processo de desenvolvimento econômico tinha parado. Quando você ouvia “Eu quero escola padrão Fifa”, estava muito claro. Essas pessoas começaram a ter ascensão social. E a primeira coisa que elas fizeram foi tirar os filhos da escola pública e botar na escola privada. Vinte e quatro milhões de pessoas saíram do sistema público brasileiro para o privado. A segunda coisa que fizeram foi abrir mão do SUS e comprar um plano de saúde. A terceira coisa foi comprar um carro. Essas famílias foram corroídas por esses três gastos. Quando elas saem para pedir mais serviço, estava claro: esse processo econômico parou, paralisou — conclui o filósofo Vladimir Safatle, entre os principais intelectuais de esquerda do país e professor da Universidade de São Paulo (USP).

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