Nossa Senhora em seu manto azul
mariana luiza 16/11/2017 20:56 - Atualizado em 19/05/2020 14:22
Nossa senhora e seu manto azul
Nossa senhora e seu manto azul
Éramos vizinhas e quase todos os dias quando saía de casa, me encontrava com ela na ladeira que dá acesso ao meu prédio. Eu, desleixada e distraída, quase sempre sem batom, quase sempre com o celular nas mãos. Descia a rua feito um foguete, atrasada para compromissos sem importância e com os olhos na tela e a cabeça nas mensagens e curtidas virtuais.
Diferente de mim, ela estava sempre impecavelmente maquiada. Como se acordasse e a primeira coisa que fizesse, fosse colocar um sonho no rosto em forma de cor. Igualmente a mim, ela vivia absorta ao cotidiano. Com seu olhar longe, pouco ou quase nada interagia com os transeuntes.
Sua atenção era para os perigos da rua. O resto, todo o resto, podia esperar.
Nunca soube seu nome. Nunca lembrei de perguntá-lo.
Fernanda. Hoje eu sei. Preferia nunca ter sabido.
Por poucas vezes, tentei puxar uma conversa. Saber porque estava na rua, se tinha família próxima. Se estava com fome. Uma dessas vezes, dei a ela um batom que vivia há muitos perdido na minha bolsa.
Ela sorriu. Ela sempre sorria e logo depois, sumia do rosto deixando apenas o sorriso congelado em forma de disfarce. Para voar bem longe das questões terrenas de Copacabana.
Um dia ela sumiu de verdade. De sorriso e corpo. Não dormia na ladeira da Coelho Cintra, nem no matagal próximo ao Rio Sul. Achei que tivesse morrido. Ou reencontrado a família.
Depois de um bom tempo, apareceu barriguda. Estava arredia. Não deixava a gente se aproximar. Conversava sozinha com a veemência dos que carregam a dor. Tinha parado de sorrir, mas ainda usava maquiagem. Ainda se vestia do sonho diário para enfrentar a vida.
E eu, sempre distraída, sempre preocupada com reuniões e encontros sem importância, desencontrei do tempo que nos afastou.
Não sei o que foi feito daquele feto. Não sei o que foi feito daquele corpo. Daquele sorriso. E eu só me importava com isso, nos breves instantes em que cruzávamos uma com a outra, quando eu abria mão de olhar para o meu celular para fitá-la.
Ela já não dormia mais nos arredores. E de pouco em pouco, de quando em quando, vi sua barriga crescer e decrescer.
Agora, só encontrávamos quando eu passava próximo à Duvivier. Ficava por ali, na Nossa Senhora de Copacabana, com sacolas de panelas bem ariadas, suas roupas e maquiagens.
Um dia, dirigia meu carro quando parei no sinal. Olhei para o lado. Estava ela. No meio da calçada, na Nossa Senhora de Copacabana, enrolada num manto azul com uma touca branca na cabeça e um batom vermelho, que jurava ser o que eu tinha lhe dado. Os lábios cerrados não sorriam. E ela olhava para o horizonte como se esperasse a volta do seu pensamento.
E eu, que sou descrente de deus, vi Nossa Senhora. Majestosa Nossa Senhora num manto azul na Copacabana.
Saquei aquilo que tinha nas mãos e tirei-lhe uma foto. Digna de um altar.
Hoje descobri que ela foi assassinada por dois marginais. E por causa deles, descobri seu nome estampado nas manchetes.
Agora eu choro pelas poucas vezes que insisti na conversa, por não saber por Fernanda, quem era a Fernanda, e principalmente, por não ter voado com ela pela estratosfera de Copacabana.

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