o colecionador
- Atualizado em 16/08/2017 23:48
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O colecionador
Cândida Albernaz
Costumava chegar a casa no mesmo horário todos os dias. Almoçava com os filhos e a mulher uma comida “saudável”, como gostava de afirmar.
No escritório, um café bem forte e um copo de água gelada eram depositados em sua mesa, cinco minutos depois que entrava. A secretária desde o dia em que começara a trabalhar com ele, fora orientada sobre seus hábitos e horários. Não gostava de mudá-los nem admitia que alguém o fizesse.
Com a pasta, onde guardava tesouros que imaginava possuir, caminhava pelo corredor da empresa cumprimentando um e outro com um movimento de cabeça.
Todos o respeitavam e estranhavam. Com uma estatura alta e corpo magro, mantinha os ombros encurvados, como se o peso da pasta que carregava fosse muito grande. Não era de conversa e quando vinham com um assunto que não o interessava, olhava com tamanho desdém que o outro se sentia constrangido, desistindo de levar a conversa adiante.
Em casa não era muito diferente disso. Quando a mulher levantava, a mesa do café estava arrumada, o jornal ao lado da xícara e a televisão ligada, pois gostava de saber sobre o tempo antes de sair. Acordava-a vinte minutos antes de ir para o trabalho para que tomassem o café juntos. Mal tirava os olhos do jornal que lia rapidamente. Ao sair, beijava-a e dizia que estaria de volta para o almoço que era servido invariavelmente às treze horas.
Sentado à mesa, separava o que julgava ser importante resolver pela manhã. Era arquiteto em uma construtora bem sucedida. Apesar de reservado e ter dificuldade em se comunicar, sua mente e mãos criavam prédios de fácil aceitação para venda.
O que mais chamava atenção em sua figura, era a pasta da qual não se desgrudava por nada. Os comentários eram diversos, desde que ali havia joias, dinheiro, documentos ou fotos comprometedoras.
Depois do jantar servido às dezenove horas, tinha o hábito de sair para uma volta. Sua mulher desfazia a mesa onde jantavam e olhava-o pegar a pasta ao lado da cadeira e ir para a rua. Geralmente voltava em meia hora e assistiam algum programa na tv. Pelo menos uma vez no mês, ele se demorava mais no passeio.
Nesses dias, após pegar a pasta, ele caminhava ao longo da avenida, entrava em um ônibus, descia em algum ponto onde pegava outro.
Fazia sempre percursos diferentes. Pensava que era sorte morar numa cidade grande onde podia variar os lugares que frequentava.
Entrou em uma porta estreita, de onde se podia ver a escada, em que a lâmpada pendurada no teto, mal iluminava.
Enquanto subia, reparava na sujeira à volta. As paredes marcadas por mãos e o chão, todo arranhado. Diante de uma nova porta, bateu com os nós dos dedos, retirando em seguida um lenço do bolso onde limpou as mãos. A mulher que surgiu à sua frente não era tão jovem como anunciara no jornal, nem tão morena também. Alguns fios brancos podiam ser vistos através da tintura mal feita.
Entrou e observou-a. Vestia uma camisola já gasta, e segurando sua mão, levou-o para a cama. Morava sozinha naquele quarto e sala. Verificara antes. Pediu para ir ao banheiro, e ela o indicou sorrindo. Com um movimento deixou um dos seios à mostra.
Ali dentro, depositou a pasta em cima da tampa do vaso sanitário, não sem antes limpar o mesmo com uma enorme quantidade de papel higiênico. Retirou um pote de vidro que continha um líquido transparente e um pequeno nécessaire. Abriu e despejou parte do conteúdo no bolso da calça, deixando todo o resto ali mesmo e foi para o quarto.
A mulher aproximou-se tentando lamber sua orelha. O contato da língua gelada provocou nele uma sensação de nojo.
Virou-a com rapidez, fazendo com que seu corpo, de costas para ele, não visse o que fazia. Ela resmungou estar sentindo um cheiro esquisito, mas, sem que houvesse tempo para qualquer reação sentiu o lenço obstruindo nariz e boca até que perdesse os sentidos.
Ele jogou o corpo agora inerte sobre a cama e tirou do bolso uma lâmina fina. O corte no pescoço fez com que jorrasse sangue encharcando a colcha rapidamente. Pegou a mão da mulher e levantando o dedo anular, colocou um anel que trazia consigo, para em seguida decepá-lo. Voltando ao banheiro, guardou o dedo enfeitado dentro do pote.
Arrumou suas coisas e limpou o que podia para não deixar rastros. Saiu do prédio sem que ninguém o visse. Andou três quadras e de um ponto de ônibus seguiu para casa.
Ao chegar, sua mulher o esperava. Ele sorriu, deu-lhe um longo beijo e chamou para que subissem. Ela o olhou maliciosamente. Sabia que quando a beijava dessa forma, faziam amor.
Dirigiu-se a ela, enlaçou seu corpo apertando levemente o pescoço como se a sufocasse e mordeu sua nuca. Ela fingia sentir dor. Enquanto a beijava, seu olhar procurava a pasta. Tranquilizando-se viu que estava sobre a cadeira onde a colocara. Fechou os olhos sentindo o gozo que o dominava.

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".