Os perfis humanos da modernidade
Arthur Soffiati
Não houve o mínimo indício de ilicitude na nossa conversa. Apenas pensei que os índios estavam inseridos num mundo dominado pelo capitalismo. Hoje, entendo que a globalização ocidental (sinônimo de economia de mercado e de modernidade) dissolve as relações sociais tradicionais. Ela dilui as sociedades pré-capitalistas de forma impiedosa. Marx reconheceu esta capacidade destruidora do capitalismo. Embora eu não seja marxista em seu projeto de futuro, reconheço o valor das análises marxistas.
O mercado detonou as comunidades tradicionais e as substituiu por uma legião de indivíduos. Hoje, os indivíduos vivem em função de si próprios. São individualistas. Vivem em sociedade, mas não vivem por elas. Ao estudar as sociedades tradicionais, concluo que elas eram maiores que os indivíduos que a integravam. Os bens produzidos serviam para o uso, não para a troca. Hoje, com exceção dos bens com valor sentimental, os demais bens devem ter valor de mercado. Num mundo como o nosso, o indivíduo, além de individualista, é também consumista e não se situa mais em contextos históricos. Existe uma história, mas os indivíduos a ignoram, no seu imediatismo. Daí tanta opinião inconsistente até por parte de estudiosos.
Numa análise inicial, identifico três tipos de perfis produzidos: o do alienado, o do reducionista e o do independente. O alienado representa a humanidade em sua profundidade. Ele não se interessa pelo contexto e pelo tempo. Reage apenas a situações de sobrevivência. Não é apenas representado por pobres. A grande maioria da classe média se enquadra nessa categoria. Trata-se de um perfil conservador. Não são assim os que estão abaixo da linha de pobreza. Para a pessoa alienada, a religião está presente, mas não é vivida com intensidade. Trata-se apenas de um conforto existencial, se tanto.
Já o reducionista toma partido com facilidade. Reduzir é excluir e simplificar o mundo para lhe conferir sentido. É mais fácil lidar com poucos elementos que com muitos. As operações reducionistas eliminam os ruídos de uma interpretação. A realidade, assim, resume-se a nós e eles, a nós e os outros. À verdade e à razão, que estão conosco e não com eles. O independente, por sua vez, é aquele que desconfia. A modernidade lhe subtraiu o contexto cultural e o abandonou com seu pensamento. Agora, ele tem de se virar sozinho. As religiões não mais lhe dão as respostas desejadas. As doutrinas e os partidos políticos, sucedâneos das religiões, não conseguem satisfazê-los. As éticas coletivas não mais o contentam.
O independente sofre. É preciso abrir caminho por conta própria. É preciso construir éticas. Ele pode ter opinião e assumir um lado, mas sempre de forma complexa e considerando o lado do outro, pois o contrário de uma verdade não é necessariamente uma mentira. Pode ser outra verdade. Seus julgamentos sempre envolvem múltiplos fatores. Para ele, as éticas religiosas e partidárias foram empobrecidas pela cultura da modernidade.
O independente inveja o alienado e o reducionista, mas de forma salutar. Seria bom não pensar em nada ou simplificar o pensamento. Thomas More, Montaigne, Max Weber, Dostoievski, Umberto Eco e Edgar Morin desenvolveram pensamentos independentes e auto éticas. A atual crise política do Brasil é um desafio para os três tipos, que nunca são puros no sentido weberiano. O alienado reage a ela por questões de sobrevivência. O reducionista assume um lado com facilidade, seja contra ou a favor; a favor ou contra. O independente também assume posições, mas sempre de forma complexa.