Terror sem sobrenatural (Corra)
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 23 de maio de 2017
(CINCO MATEUSINHOS)
Corra
Terror sem sobrenatural
Edgar Vianna de Andrade
 
Para fins do meu próprio entendimento, elegi duas características para classificar um filme no gênero “terror”: suspense e sobrenatural. Pode haver suspense sem sobrenatural e sobrenatural sem suspense. Trata-se de um critério meu apenas. E nesse sentido, “Corra” é um filme de suspense. De forma alguma a falta do elemento sobrenatural reduz a qualidade do enredo. O diretor e roteirista do filme é o negro Jordan Peele, com pouca experiência no cinema. Ele é mais conhecido na televisão. Pode-se dizer que estreia no cinema com o pé direito, ao conceber e dirigir “Corra”.
A leitura do primeiro plano do filme assusta. A loura Rose Armitage (Allison Williams) namora o negro Chris Washington (Daniel Kaluuya). Ela o convida a conhecer seus pais, que moram numa casa de campo. Ele hesita, pois teme a reação dos pais brancos da namorada. Sem problemas, ela o tranquiliza. Seus pais não são racistas. O pai votaria em Obama se fosse possível uma segunda reeleição. Chris cede e acompanha a namorada. Os sinais de perigo começam já no início do filme. Não se tem ideia quanto à natureza deste perigo: sequestro de negros? Atropelamento de cervos? Morte da mãe de Chris por atropelamento?
Na mansão dos pais da moça, coisas estranhas começam a acontecer. O casal de empregados é negro. Ela e ele se comportam como zumbis. O irmão da namorada é alcoólatra. Os pais promovem uma festa a que comparecem brancos ricos, todos eles aceitando perfeitamente o namoro entre uma branca e um negro. À festa, comparece um negro casado com uma mulher branca bem mais velha. Estranho, tudo muito estranho. Missy Armitage (Catherine Keener), a mãe, hipnotiza Chris para que ele abandone o cigarro, apenas com o movimento de uma colher numa xícara de chá. Ele nunca mais será o mesmo.
Na festa, Chis é examinado como um belo animal. As revelações começam a ser feitas. Passa-se, então, para a explicitação de uma grande metáfora ou fábula. Um convidado diz: “negro está na moda”. O não dito é: “mas não deve. Lugar de negro não é aqui, entre brancos. Negro nasceu para ser serviçal. Tiramos dele o que há de melhor e o reduzimos à sua condição inferior”. Estamos diante da Ku-Klux-Klan modernizada. Não é mais necessário matar totalmente os negros. Basta matá-los parcialmente. Seus órgãos e seu trabalho interessam aos brancos.
Toda moda do politicamente correto é uma fina camada de verniz que esconde o racismo ainda existente. O que Peele parece pretender é remover este verniz e mostrar que, por baixo dele, o preconceito continua existindo nos Estados Unidos, apesar de um esforço em sentido contrário pelos progressistas brancos. A mensagem vale para outros países.
Mas Peele não se liberta de alguns clichês dos filmes de terror. Na verdade, ele tenta ultrapassar o suspense recorrendo a movimentos bruscos de pessoas, sons fortes e inesperados. A namorada de Chis é a isca para uma armadilha em que ele cai. Para sair dela, é preciso matar os membros da família e ser salvo por um amigo. Se nos limitarmos ao plano visível do filme, Chis seria preso e condenado à morte pelos assassinatos. No plano metafórico, ele está descortinando a onda do politicamente correto quanto aos negros. No final, Peele ou mostra que o negro vence ou que, pelo menos, se salva. Gosto mais deste segundo sentido.

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    Aristides Soffiati

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