As globalizações
14/05/2017 10:35
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 14 de maio de 2017
As globalizações
Arthur Soffiati

Houve processos de globalização anteriores ao que vivemos. Os mais expressivos foram o persa, o chinês, o macedônico, o romano, o mongol e o islâmico. Nenhum deles, porém, foi tão amplo no espaço e profundo em intensidade. Todas as globalizações anteriores à ocidental foram parciais. Nenhuma delas tinha motivações econômicas tão fortes como a atual. Elas exigiam, necessariamente, a dominação territorial, formando vastos impérios. A ocidental começou com a formação de impérios, mas hoje não necessita mais deles. O que conta é o modo de vida ocidental. Nenhuma delas, nem mesmo a ocidental, conseguiu uniformizar a cultura. Mas todas elas causaram angústias características de processos de aculturação.
As globalizações criam terrenos culturais híbridos, com a dissolução de modos de pensar e viver tradicionais. Essa dissolução desempara as pessoas. Elas têm, então, duas reações básicas: aferrar-se a expressões tradicionais de cada cultura atingida ou criar novas expressões de pensamento. A segunda reação costuma externar a angústia sentida pela aculturação. É bem verdade que, esfacelados os impérios não ocidentais, as formas culturais tendiam a se recompor. No ocidente, contudo, a globalização é profunda e parece não ter fim em tempo previsível.
Não conheço bem os resultados culturais dos impérios persa e mongol, mesmo porque a vida de ambos foi curta. A China que conhecemos é resultado da união de Estados com cultura aparentada. Eles eram independentes e lutaram entre si do século V a. C. a 221 a. C. Lao-tse e Confúcio podem ter vivido antes do período dos Estados combatentes, mas suas doutrinas ganharam sentido durante esse período de incerteza. Não sem razão, os ensinamentos de ambos buscam a paz entre pessoas e sociedades e a união com o universo.
O império macedônico, fundado por Filipe e Alexandre (356 a 323 a, C.), enquanto entidade territorial, esfacelou-se após a morte do segundo. Mas as repercussões culturais emendaram-se com as do império romano. As religiões tradicionais existentes em toda área do império sofreram impactos muito fortes e foram forçadas a se adaptar a eles. Até o budismo sofreu influências gregas difundidas por Alexandre, chegando à China e ao Japão. As filosofias bem estruturadas de Platão e Aristóteles não resistiram ao tranco dos processos aculturativos. A angústia reinante traduziu-se nas filosofias cética (criada por Pirron), epicurista (criada por Epicuro) e estoica (criada por Sêneca). As três aparentam escapismo do mundo, mas traduzem o estado de espírito da época. Buscam caminhos que permitam viver num mundo conturbado.
O império romano é sucessor do império macedônico. O historiador inglês Arnold Toynbee entende Grécia e Roma como partes de uma mesma cultura, que ele denomina de helênica. Dentro do império romano, os processos de aculturação se intensificaram e geraram mais problemas existenciais. As novas doutrinas pululam no seu interior como atualmente com a fundação de diversas igrejas em toda a extensão do mundo ocidentalizado. O culto egípcio a Isis sofreu mudanças profundas e invadiu a Itália, coração do império. O judaísmo foi abalado pela cultura helênica. Nasceu, assim, o Cristianismo. Para um estudioso sereno, o Cristianismo é a mescla perfeita de uma concepção humanista grega com uma concepção monoteísta judaísta. Ele se expressa por um Deus uno e trino. Um dos integrantes da trindade é o filho de Deus, que assume forma humana e é sacrificado para salvar a humanidade. Os santos representam a herança do politeísmo helênico. Falo apenas da antropologia cristã sem qualquer intenção de me intrometer nos aspectos referentes à fé. Como uma religião se dirige a humanos, ela deve se expressar em termos humanos.
Logo nos primeiros séculos do Cristianismo, ele é diferentemente interpretado, dando origem a doutrinas ainda existentes. Seja como for, todas elas cumprem a função de confortar almas aflitas por tanta conturbação política e cultural. Na Idade Média, o Cristianismo na forma apostólica romana tornou-se dominante, sem que expressões menores dele continuassem vigorando na periferia da Europa ocidental.
Esse Cristianismo imperial foi abalado pelo capitalismo e pela expansão europeia. Novamente, a paz cultural é abalada. A expressão cultural desse abalo é a cisão do Cristianismo romano pela reforma luterana, que deu origem a diversas denominações cristãs e a guerras por motivos religiosos em sua superfície. Tais guerras levam à exaustão. Locke, então, redige as famosas “Cartas sobre a tolerância”, propondo que a religião se transforme em questão de foro íntimo.
É preciso sobreviver à dor gerada pela confusão. Os suicídios aumentam a partir do século XV. Alguns pensadores desenvolvem soluções próprias dentro do Cristianismo. No século XVI, os exemplos dessas soluções são Thomas More, Erasmo e Montaigne. Há outros, mas fico apenas com esses três. Deles, Montaigne foi sábio. Ele aparentou catolicismo por fora, mas desenvolveu uma solução própria de vida: viver é aprender a morrer. A dúvida é a marca da sua filosofia. Daí sua tolerância com a diferença. A voz de Montaigne ainda ecoa vigorosa nos nossos dias.

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    Aristides Soffiati

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