Minha música
- Atualizado em 31/05/2017 21:30
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Minha música
Cândida Albernaz
Esta noite foi mais difícil. Se não fossem as músicas que apenas eu escuto, não teria suportado.
Sinto que o colchão parece mais duro do que o normal, machuca o corpo e me deixa sem forças para virar.
O quarto escuro conforta já que mal consigo enxergar. A idade chegou e com ela a falta de visão e a dificuldade de movimentos.
Às vezes grito e até falo alguns palavrões inocentes. Se mamãe ouvisse, chamaria minha atenção ou, com tal rapidez o tapa explodiria em cheio na minha boca. Nunca consegui ser mais rápida do que ela.
Recordo de minha mãe sentada em frente ao espelho da penteadeira escovando os longos cabelos pretos que costumava prender num coque baixo. Eram negros. Mesmo com a idade avançada, podiam-se contar os fios brancos. Comigo é diferente: consigo contar os fios pretos. Principalmente agora que estou doente e não posso pintá-los.
A impressão que tenho é de que mamãe nunca foi jovem, tão preocupada costumava ser. Vida difícil, a que teve. Hoje entendo que se não sorria com frequência ou não nos acarinhava, foi porque não teve acesso a esses gestos.
As costas voltaram a doer. Acredito que a melodia de Chopin fez com que eu me esquecesse de mim e permanecesse numa mesma posição por muito tempo.
Ouvi quando a enfermeira comentou sobre uma ferida no quadril. Falou baixo para que não escutasse, como se não soubesse eu mesma onde sinto minhas dores.
Lembro-me de papai, que tinha nas pernas, próximo ao tornozelo, excesso de veias grandes e roxas e pouca circulação sanguínea formando ali também um ferimento que não cicatrizava quase nunca.
Foi um homem autoritário, difícil de lidar, acho que herdei dele essa parte do temperamento. Em compensação, quando chegavam os netos, virava criança junto a eles. Até o fim foi um homem imperioso. Alto e bonito, assim me recordo.
Não sei por que algumas vezes não consigo saber quem é a pessoa que vejo sorrindo à minha frente. Disseram que estou com lapsos de memória. Talvez seja verdade porque outro dia minha filha falou:
- Mãe, acabei de trazer você da sala. Pediu para vir para o quarto e agora quer voltar.
Não dei o braço a torcer, mas não me lembrava de realmente ter estado na sala. Não gostei de perceber isso. Esquecer o que vivi é o que me angustia. O passado, mesmo que entremeado de lembranças ruins, vem cheio de boas recordações que consolam e aconchegam.
Antônio foi o homem que amei muitos anos atrás. Era gentil e não cansava de repetir o que sentia por mim. Não pudemos ter uma vida juntos. Droga! Não consigo saber de que forma o perdi. Odeio essa dificuldade de reter reminiscências.
O teclado do piano soa forte e faz com que estremeça de prazer. Vivaldi e seus acordes alegres.
É incrível como nesse momento em que a vida parece fugir, a música continue a soar intensa em meu ouvido.
Noto o olhar de preocupação de minha filha. Tenho vontade de gritar para que não sofra por mim. Estou bem, apesar das dores. Preciso descansar. Não se preocupe, vou fechar os olhos apenas um pouquinho.
O som do piano que ouço, é a companhia perfeita para o sono.
Sinto os dedos percorrerem as teclas pretas e brancas, e enfim consigo tirar a melodia mais bonita que jamais toquei.
A música é minha vida.

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".