Folha Letras: A poesia brasileira em 2016 (I)
Arthur Soffiati 27/04/2017 18:33 - Atualizado em 24/06/2017 23:49
Comecemos pelos mais antigos. Oswaldo de Andrade ganhou uma nova edição de seus poemas, reunindo sua pequena, mas expressiva criação poética (“Poesias reunidas”. São Paulo: Companhia das Letras). Além dos livros, 22 dois poemas inéditos figuram na edição, além de fortuna crítica. A destacar, “Uma poética da radicalidade”, de Haroldo de Campos, originalmente publicada em “Poesias reunidas” do polêmico poeta (São Paulo: Difel, 1966).
Os irmãos Haroldo e Augusto de Campos fundaram o movimento do poema concreto e saíram à procura de um pai para ele. Encontraram-no em Oswald, que opuseram a Mário de Andrade, mas de forma a exaltar um sobre o massacre do outro. Alguns trechos do artigo:
“Já a ‘Pauliceia desvairada’ é um livro esteticamente representativo, compreendendo poemas como a ‘Ode ao burguês’ e o oratório profano ‘As enfibraturas do Ipiranga’, exemplos da melhor dicção marioandradina; apesar disso, não há nele nenhum sentido de despojamento, de redução, de síntese, como o que distingue a poesia ‘Pau Brasil’ de Oswald. É que Mário não questionava a retórica na base; procurava antes conduzi-la para um novo leito, perturbá-la com a introdução de conglomerados semânticos inusitados, mas deixava o verso fluir longo, só aqui e ali interrompido pelo entrecortado ‘verso harmônico’ (‘Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar! ’, no corpo de um poema como ‘Tietê’), e a temática e o rimário (frequentemente a sua força, pelo imprevisto e pela dissonância) afetar-se por uma componente simbolista invencível, de um simbolismo urbano à Verhaeren.” “Mário de Andrade, o esteta, não avaliou bem a importância da estética redutora de Oswald (...) o equívoco de Mário estava em querer analisar as realizações de Oswald a partir de esquemas parnasianos que lhes ficam nos antípodas.”
Creio que se trata de uma discussão já superada. Mário embasa teoricamente sua produção poética tão bem quanto João Cabral de Melo Neto embasa a sua. Oswald escreveu muitos manifestos, mas não conseguiu produzir tanto quando Mário. Além do mais, mostrou-se desnorteado depois de algum tempo. Não gostava da poesia que dizia ter nele o pioneiro. Quis ingressar na Academia Brasileira de Letras. Tornou-se conservador e confuso no fim da vida. Mário morreu antes de envelhecer. Talvez uma saída melhor: não envelhecer.
Um pequeno e pouco conhecido livro de João Cabral de Melo Neto e Aloisio Magalhães ganhou edição primorosa. Trata-se de “Aniki Bóbó” (Rio de Janeiro: Verso Brasil). Eles eram primos, um poeta e outro artista plástico. João Cabral gostava da pintura moderna e lhe dedicou muitos poemas.
O livro foi editado pela primeira vez em 1958, de forma artesanal. Na edição recente, vem acompanhado de estudos. Sérgio Alcides diz que “O apagamento do eu no enunciado apenas reforça o sujeito da enunciação, cuja presença em todas as circunstâncias abordadas se torna o maior pressuposto de sua desaparição ilocutória (...) Os poemas de Cabral não assentam com firmeza em nenhum lugar senão na página. Serão sempre uma ‘paisagem tipográfica’...”
Num depoimento de 1966, o próprio poeta fala do seu método de criação: “Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu aprendi com Le Corbusier. A poesia é uma composição. Quando digo composição, quero dizer uma coisa construída, planejada — de fora para dentro. Ninguém imagina que Picasso fez os quadros que fez porque estava inspirado. O problema dele era pegar a tela, estudar os espaços, os volumes. Eu só entendo o poético nesse sentido. Vou fazer uma poesia de tal extensão, com tais e tais elementos, coisas que eu vou colocando como se fossem tijolos. É por isso que eu posso gastar anos fazendo um poema: porque existe planejamento (Depoimento de João Cabral (1996) nos “Cadernos de Literatura Brasileira”).
Os dois primeiros livros de Manoel de Barros – “Poemas concebidos sem pecado” e “Face imóvel” (Rio de Janeiro: Alfaguara) também ganharam nova edição com documentos, como cartas de artistas escritas para ele na época da primeira edição. Temos aqui um Manoel de Barros diferente do que conhecemos. Ele era ainda um poeta urbano e socialista. No retorno para o pantanal, é que desabrocha o poeta telúrico que conhecemos.
O Estudioso Ítalo Moricone lançou em segunda edição, o livro “Destino: poesia” (antologia). (Rio de Janeiro: José Olympio) reunindo poetas da “geração mimeógrafo”. Na apresentação, Moricone esclarece que “A década de 70 do século XX no Brasil foi tempo de muita poesia e muita loucura (...) “... a poesia surgida nos anos 1970 tem mais a ver com euforia e celebração, às vezes ironia, frequentemente desencanto.” A antologia reúne Ana Cristina Cesar, Cacaso, Torquato Neto, Paulo Leminski, e Waly Salomão, todos eles mortos jovens ou por suicídio ou por problemas orgânicos. Moricone afirma que “... pela primeira vez na história da poesia literária brasileira, e quiçá mundial, um novo movimento inspirou-se não primordialmente em ícones literários do passado e sim na palavra cantada de seu próprio tempo. A poesia brasileira de livro, nos anos 1970, nutriu-se de letras de música.”
Ana Cristina teve vida curta. Ela desmistificou o poeta e escreveu sem a seriedade que muitos escritores se atribuem. Por exemplo: “Enquanto leio meus seios estão a descoberto. É difícil concentrar-me ao ver seus bicos. Então rabisco as folhas deste álbum. Poética quebrada pelo meio.” Já Cacaso, em “Tiau Roberval (ou: vai nessa malandro)”, escreve no mesmo tom da música “Festa de arromba”, só que ambientada num enterro.
Torquato Neto e Waly Salomão escrevem poemas como letras de músicas, o que realmente aconteceu. De todos, no meu entendimento, destaca-se Paulo Leminski, que, além de poesia, escreveu prosa, ambas de boa qualidade. A arte japonesa, sobretudo o hai-kai, influenciou muito a sua arte. Seus poemas geralmente são curtos e cortantes:
“a noite/me pinga uma estrela no olho/e passa”
“morreu o periquito/a gaiola vazia/esconde um grito”
Da geração da poesia marginal, ainda estão vivos Chacal, Francisco Alvin, Leila Mícolis, Alice Ruiz e Leda Beatriz Abreu Spinardi, ou simplesmente Ledusha, cujo famoso livro “Risco no disco” ganhou segunda edição (São Paulo: Luna Parque). Ela escreve na mesma atmosfera dos outros da sua geração: “dava um realce na barra/e afogava balzac na pia.” “felicidade é alguém lhe dizer que seus pés/são intrigantes”. Seus poemas foram escritos entre Rio de Janeiro e São Paulo, de 1974 a 1981.
Armando Freitas Filho é, de todos aqui referidos, o único vivo. Mas sua criação poética já tem vida longa. Começou em 1963. Desde então, o poeta não parou de escrever. A impressão que sua poesia nos dá é que ele escreve e reescreve com outras palavras seus poemas. Em 2016, Freitas Filho publicou “Rol” (São Paulo: Companhia das Letras). O poeta caminha numa das duas trilhas do modernismo: aquela do verso longo e do eu poético aparente. Sua poesia transborda. Como Manuel Bandeira, talvez ele viva em estado de poesia:
“Oh! O oval da boca/se alonga na forma/de um dedo e chupa/envolvendo-o de ponta/a ponta, a fundo, e/engole gulosa até a/última gota do gozo/e no estojo justo da/língua, falo alto: Ah!”
Ou: “E os breves olhos d’água/com catarata/do Rio Carioca/que ainda nos enxergam/por umas três vezes/na sua corrente/ficarão cegos, presos, internos/por completo, incapazes/de refletir um pinto de céu?”
Para dar conta do tema, é preciso continuar no próximo mês.

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