No olho do furacão
23/04/2017 11:09
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 23 de abril de 2017
No olho do furacão
Arthur Soffiati
 
Suponhamos que os Estados Unidos pressionem tanto a Coreia do Norte que ela, irresponsavelmente, lance seus poucos mísseis com ogivas nucleares em direção à costa oeste do grande país americano. Suponhamos que os Estados Unidos revide o ataque com bombas mães do tipo da lançada sobre o Afeganistão numa demonstração de força para o mundo. Imaginemos ainda que os mísseis norte-coreanos sejam interceptados pelos antimísseis dos Estados Unidos. Tudo explodiria no ar.
Não se trata de um exercício fútil de imaginação, mas sim de realidade. Nenhum governante queria começar a Primeira Guerra Mundial, mas ela foi deflagrada. No caso de uma guerra iniciada por Estados Unidos e Coreia do Norte, outros países, como China a Rússia, poderiam ser arrastados para ela. O mundo esteve perto de uma terceira guerra mundial com a crise dos mísseis de Cuba, em 1962. Está perto de outra com a crise da Coreia do Norte.
O mundo não acabaria nem a humanidade seria extinta com uma guerra nuclear entre um grande e um pequeno país, mas todos sofreriam muito. Assuntos em primeiro plano, como a Operação Lava Jato, o avanço da direita na Europa, a guerra na Síria, o conflito entre Israel e Palestina, a sultanização da Turquia, o drama dos refugiados passariam para segundo ou terceiro plano. Os próprios loucos Donald Trump e Kim Jong-un perderiam importância. As súplicas do Papa e de outros líderes religiosos tornar-se-iam inúteis.
E pensar que o mundo em que vivemos começou a ser construído há seiscentos anos, na Europa Ocidental com a expansão marítima... As armas usadas então eram insignificantes perto das atuais. Basicamente, os europeus contavam com a caravela e a pólvora, nada tão diferente do que tinham outras civilizações. O que impulsionava os europeus era algo inédito na história: um sistema de produção objetivando o lucro. Os textos dos séculos XV e XVI já estão recheados de temas que nos são muito comuns atualmente: dinheiro, lucro, desigualdade social, corrupção...
A caravela, a pólvora e o capitalismo foram se aprimorando com o avançar do tempo. Hoje, contamos com caravelas super-velozes, com caravelas que navegam em baixo d’água, com caravelas que voam, com caravelas que transportam aeroportos. Também com armas altamente letais. E também com grandes organizações voltadas para o lucro. Podemos nos indignar com escândalos, mas não devemos nos surpreender. As delações de diretores da Odebrecht mostram que o capitalismo usa de todos os meios para alcançar lucros. Mesmo que uma empresa não recorra à propina, a tendência para tal está embutida nela. É muito difícil, senão impossível, conciliar economia de mercado com ética.
Apesar de tudo, uma guerra entre um grande e um pequeno país poderiam arrastar todas as atenções para ela e mostrar que, a partir do século XV, começou uma rota de colisão entre países, entre culturas e com a natureza. Tal rota é irracional. Uma guerra no século XVIII matava muitas pessoas, arrasava campos e cidades, mas não acabava com um país, com a natureza. Naquele tempo, uma guerra gerava lucros com a destruição e com a reconstrução, como acontece com as guerras da atualidade. Uma guerra nuclear nos dias de hoje será também lucrativa em se tratando da venda de armamentos. Será lucrativa na reconstrução? Se for, ela gerará muitos lucros, mas será demorada e causará um estrago bem próximo do ponto de não retorno. Os entusiastas do desenvolvimentismo e do progresso não gostam ou não conseguem enxergar que o desenvolvimento e o progresso tão defendidos por países, empresas e pessoas não trazem o bem geral, mas beneficiam empresas e políticos, além de serem contra produtivos.
O uso bélico de armas nucleares atualmente seria mais arrasador que as duas bombas atômicas lançadas sobre o Japão em 1945. Explodindo no solo ou na atmosfera, bombas atômicas afetariam o mundo todo e agravariam mais ainda os problemas que nos afligem.
Se minhas palavras foram entendidas pelo possível leitor, pense-se agora que uma destruição pior está em marcha desde o século XV. Ela não mata apenas humanos, mas também outros seres e os componentes da Terra. Ela é lenta. Destrói em doses homeopáticas, até mesmo imperceptíveis, ao longo de centenas de anos. Seus efeitos estão sobre nossas cabeças, mas não consideramos que sejam significativos. No final das contas, os ricos ficam mais ricos com essa eclosão de pequenas bombas nucleares. Os pobres acabam também sendo lançados no campo de batalha como soldados.
Uma longuíssima guerra de seis séculos foi deflagrada no século XV, atravessa todas as guerras registradas na história e se avoluma cada vez mais. Apesar dos sinais, não acreditamos nesse tão grave conflito.

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    Aristides Soffiati

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