sem rastros
27/04/2017 00:10 - Atualizado em 27/04/2017 00:10
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Sem rastros
Cândida Albernaz
Deixe a luz do quarto acesa e quando sair não se despeça de mim. Finja que não estou aqui. Espero que doa em você o tanto que sinto arder.
A chave, coloque por debaixo da porta. Não quero ainda ter a certeza de que se foi. Mas preciso saber de que não pode voltar.
Talvez na cozinha, eu sinta ainda o cheiro do café que pela primeira vez não preparou.
Quem sabe sentada de frente para a televisão eu aceite que é normal que a esta hora ela esteja ligada para eu assistir o que jamais me interessou.
Não se volte, não me olhe, porque não pretendo que note em meu rosto, as lágrimas que não consegui evitar. Teria que dizer que o ridículo programa que não vejo está me fazendo chorar. E vou pretender que creia nesta explicação, porque meu orgulho não admitirá que pense que a dor em meus olhos tenha sido provocada por você.
Não se esqueça de deixar a cama arrumada como se em nenhum dia algum amor tenha sido feito ali.
Por favor, retire o porta-retratos onde na foto me deixei abraçar rindo com vontade por estar me sentindo dentro de você. Leve-o.
Não deixe rastros, nem mesmo marcas das juras que fizemos um ao outro afirmando que estaríamos para sempre juntos. Palavra longa demais: sempre.
Foram pedaços de tempo recheados de horas que pareciam nunca iriam morrer. Palavra longa demais: nunca.
Não vi a lágrima que deveria estar escorrendo de seus olhos para desaguar em sua boca.
Aliás, não recordo da boca que engolia a minha, do gosto da saliva que se misturava em nossas línguas.
Leve embora o tênis que ontem, num gesto de carinho, limpei a areia que nele havia grudado. Está na área de serviço sobre o parapeito da janela para que secasse mais rápido.
Quando eu levantar e desligar a tv, quero ter a certeza de que sempre fui eu comigo mesma.
Se estiver saindo, feche a porta devagar, sem fazer barulho, para que não haja sobressalto em meu coração.
Daqui posso ver que sobre a pia ainda estão as duas taças com restos de vinho. Fez de propósito, não foi? Teve a necessidade de que ficasse algo para lembrar.
Não vou abrir gavetas ou portas de armários agora. Preciso voltar a dormir, mesmo que ainda seja manhã. Ao acordar deste novo sono estarei melhor.
Durante toda a noite permaneci fixando o teto, o nada. Mentira! Não era “o nada”. Enxergava pedaços de vida vividas com você que eu parecia fazer questão de não esquecer. Ouvi quando roncou algumas vezes. Como pôde dormir tão profundo enquanto eu sofria?
Descobri o pequeno papel amassado que sem querer (sem querer?) você deixara cair no chão: “obrigada amor por mais uma noite perfeita. Da sua para sempre...”. E esta palavra de novo: sempre.
Foi então que comecei a puxar os fios e desenrolá-los, trazendo à memoria um sinal aqui e outro ali. Mensagens que chegavam durante a madrugada, isolava-se para atender o celular, mudanças de horário. Não importa mais.
Ontem quando chegou, abrimos um vinho e jantamos. Esperei terminarmos para entrar no assunto.
Foi doído. Senti que rasgava pedaços da minha pele a cada palavra sua. Não tentou esconder. Ao contrário, parecia aliviado por poder enfim dividir sua história de amor comigo.
- Preciso que entenda... pode ser uma fase... não foi a primeira vez (não??)...estou certo de que passará e estaremos ainda mais fortes.
Tentei sorrir, mas foi impossível. Não se consegue se sente facas pontiagudas enfiadas no peito.
Falou quase sem parar e eu escutei. Resolvemos dormir.
Hoje, quando tentou novamente, pedi que se calasse. Só pude dar as costas e sentar onde estive até a pouco. Não quis conversar e não vou querer qualquer outro dia.
Lavarei as benditas taças antes de deitar. Não desejo resquícios.
O quarto está com um cheirinho bom. Não o seu, mas o meu perfume recende dele. Com a cortina fechada parece ainda ser noite. Pensei vestir a camisola, mas percebi que ainda não a havia tirado.

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".