Uma vez basta
06/04/2017 00:26 - Atualizado em 06/04/2017 00:27
                  
google
flor no asfalto / google
                           
Uma vez basta
Cândida Albernaz
Na faixa de cor amarela todos podiam ler: ”Minha Loura, saudades. Seu para sempre, Moreno”.
***
Quando acordou, “a irmã caçula”, Daiana, estava ao seu lado. Mal abriu os olhos e ouviu um parabéns cantado numa voz fina, sem definição, de uma cópia sua em miniatura. Completava hoje vinte e um anos. Mas sentia como se tivesse muito mais.
A mãe, que cuidava das duas foi embora no ano passado.
- Minha querida, Nosso Senhor precisou dela, porque era muito boa. Ela vai ajudá-Lo e nós estaremos sempre juntas. – tentou convencer Daiana que chorava sem parar.
A explicação não convenceu a irmãzinha, com seis anos na época, mas foi a melhor que conseguiu dar.
Quando aos treze anos ficou grávida, não planejaram que Daiana pensasse que era sua irmã, mas nunca tentou ensinar a filha para que a chamasse de mãe. Acostumou-se desse jeito. Quem sempre acordava a noite era sua mãe, dava banho, cuidava das febres e alimentava a menina. Ficou mais fácil assim. Precisava estudar. Depois de algum tempo não soube mais como dizer a filha quem era realmente.
***
Abriu a janela que dava para a rua, e viu a faixa presa em dois postes, de frente para ela. Os olhos encheram-se de água e a sensação que teve estava longe de ser agradável.
Ele voltou a aparecer há um ano mais ou menos, e tem certeza, esse foi o principal motivo da perda de sua mãe. Ela tinha problemas no coração e vendo aquele homem rodeando a casa outra vez, foi ficando cada dia mais triste. Durante o sumiço, as pessoas comentavam que havia fugido para não ser preso. Os caras estavam atrás dele por conta de droga.
Lembrou-se de quando ia aos bailes ficava encantada com aquele homem bem mais velho, poderoso na área onde moravam, dedicando atenção exagerada a ela. Sentia-se importante. Era casado com a irmã de sua mãe e costumava ir à sua casa acompanhando a mulher e os filhos, em alguns domingos. Chamava-a de minha loura e costumava comparar a cor de sua pele com a dela. Pediu que parasse de chamá-lo de tio, e o chamasse de Moreno.
Notou que os olhares para seu lado foram ficando cada vez mais descarados e sentia-se mulher. Não foi só ela quem percebeu. A mãe tentou afastá-la dele e daqueles bailes que produzia.
- Esse safado do meu cunhado está ficando cheio de grana. E não é só com festinhas, não. Tem coisa podre atrás disso. Ninguém faz tanto dinheiro em tão pouco tempo.
Ela fingia não ouvir e perdia seu tempo com conversas com esse tio.
Aos treze anos, indo para casa, encontrou com ele no caminho, que se ofereceu para levá-la de carro: ela e as amigas. Tinha uma conversa engraçada e todas riam muito. Ficou por último, e antes de chegar, ele parou o carro num terreno. O sorriso sumiu de seu rosto, e enquanto a agarrava à força, dizia que parasse de manha porque “acha que não percebi que joga charme para mim?”. As mãos eram grandes e pesadas. Tentou se defender como pôde, mas ao final, ele bateu em seu rosto diversas vezes e com tanta força que desistiu de lutar.
Sua mãe estava na sala quando entrou em casa. Olhou para ela, e sem fazer qualquer comentário, abraçou-a chorando. Não contou quem havia feito aquilo, e quando a barriga começou a aparecer, cuidou de tudo. Nunca insistiu para saber, mas tinha certeza de que havia notado o sumiço do tio da casa delas.
No ano passado ele voltou a se insinuar quando a encontrou sozinha no supermercado. Agora, ele costumava andar com dois camaradas acompanhando-o em todo lugar.
Tentou sair, mas ele segurou seu braço com força:
- Não está com saudades do titio?
Chegou à casa agitada e a mãe perguntou o que houve.
- Nada. Encontrei com o tio agora a pouco. Não gosto dele, é só isso.
Dias depois, voltando da rua, ouviu a voz de sua mãe alterada e um barulho em seguida. Entrou e notou que o rosto dela estava vermelho. O tio saiu pisando duro e com a cara mais lavada disse estar com a mão doída e precisaria dos cuidados dela.
- Volto mais tarde para que você cuide de mim.
O sorriso em seu rosto era nojento.
Sua mãe não durou muito tempo mais depois disso. O coração que já era fraco parou de funcionar e ela se foi.
***
Ontem estava em frente de casa com Daiana e ele apareceu.
- Essa garota está ficando muito parecida com você. Quis se fazer de rogada comigo e, no entanto, logo arranjou um para te embuchar.
Ficou quieta observando a filha que brincava.
- Sabe de uma coisa? Daqui a uns três ou quatro anos essa garota vai estar no ponto. Se puxar a mãe...
Com os olhos fixos na filha, ela tinha certeza de que não permitiria.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Candida Albernaz

    [email protected]

    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".