Agonia das águas no norte-noroeste fluminense
25/03/2017 17:50
Agonia das águas no norte-noroeste fluminense
Arthur Soffiati
 
Nos dias 18 e 19 de fevereiro, percorri a bacia da lagoa do Campelo, acompanhando a professora Sandra Cunha, da UFF/Niterói, o professor José Maria Miro e a doutoranda Leidiana Alves. O rio Paraíba do Sul estava com nível para lançar água no canal do Vigário, mas as comportas estavam fechadas, impedindo que o rio abastecesse a lagoa do Campelo. O Comitê de Bacia do Baixo Paraíba do Sul defende o princípio de que as águas do grande rio só alcancem a lagoa por este canal. Era de se supor, então, que a lagoa estivesse cheia.
Em Mundéus, numa das margens dela, adultos e crianças banhavam-se em suas águas. Moitas de vegetação que cresceu por ocasião da estiagem de 2014-15, estavam à mostra. Como o Departamento Nacional de Obras e Saneamento estabeleceu um nível máximo para a lagoa ao construir um vertedouro na sua ponta norte, lançando a água considerada excedente num canal aberto pelo órgão, só se podia considerar a lagoa cheia vistoriando-a nesse ponto. Chegando lá, verificamos que a água estava muito distante do vertedouro, sinal de que a lagoa não atingiu o nível imposto pelo DNOS.
Outra constatação: dentro da lagoa, à direita do canal, cujo nome é Engenheiro Antônio Resende, um proprietário local, segundo informações de moradores, abriu uma vala dentro do leito para obter terra e erguer um dique. Sua intenção é impedir que a água da lagoa, em caso de cheia, ocupe todo seu leito. É uma prática antiga para apropriação ilícita de terra pública muito praticada na lagoa Feia até 2008, quando quatro diques foram implodidos por liminar da Justiça Federal.
Mais irregularidades foram encontradas. As quatro comportas do córrego da Cataia estavam abertas, permitindo que água preciosa fluísse para o Paraíba do Sul. Mas adiante, no canal de Cacimbas, um absurdo: alguém arrancou as duas comportas. A água acumulada em terra fluía livremente para o Paraíba do Sul. No canal de Cacimbas, bloqueado para atender a interesses de ruralistas da margem esquerda do rio, a remoção de comportas é uma contradição. Caso o rio suba de nível, não será possível evitar a contento a entrada de água pelo canal. Um morador local nos informou que a remoção delas resultou de um desentendimento entre proprietários rurais. O vândalo, como INEA e ruralistas gostam de chamar quem pratica esse tipo de ato, tem nome. É um ruralista, não um pescador.
Visitando a barragem de Funil, no canal Engenheiro Antonio Resende, verificou-se que a pouca água proveniente da lagoa do Campelo está retida ali em ponto muito abaixo do vertedouro. Nas proximidades de sua foz no mar, a água está parada e sua barra em Guaxindiba está assoreada.
No dia 24 de março deste ano (2017), três pesquisadores, eu entre eles, foram ao canal da Flecha e a Retiro, adiante dele. As comportas do canal do Quitingute estão fechadas. Por segurança, foi erguida ainda uma barragem de terra à montante das comportas. Idem para as comportas do canal de São Bento. No canal da Flecha, todas as comportas estão arriadas. Mas adiante, no rio do Espinho ou Furadinho, também as comportas estão fechadas. A água doce está retida a montante de todas as comportas. A água do mar invadiu o canal da Flecha. Comportas abaixadas indicam que a atividade rural precisa de água doce e que a cunha salina deve ser detida no seu avanço superficial (porque considero difícil detê-la no seu avanço subsuperficial).
Indo em direção a Quissamã, para entrar em Retiro, verifica-se que os rios Velho, Novo do Colégio e Barro Vermelho estão secos. Nos seus leitos, as gramíneas tomaram conta. Quem olha do alto, ainda pode se impressionar com os espelhos d’água. As lâminas d’água, porém, estão delgadas.
Barrada a água doce no canal da Flecha, o Comitê de Bacia do Baixo Paraíba do Sul quer detê-la também no curso do Paraíba do Sul, adiante do canal de São Bento por meio de uma barragem. Objetivo: elevar o nível do rio para que ele forneça água aos canais laterais, aqueles canais que foram abertos para drenagem. Uma tal barragem pode correr a fio d’água, mas afetará a foz. A cunha salina pode penetrar mais longe rio acima, deslocando o estuário e obrigando o manguezal a mudar sua posição. O aumento de salinidade no rio comprometerá o tratamento de água para consumo humano. Uma barragem reterá sedimentos que antes chegariam ao mar e impedir o livro trânsito da fauna aquática, afetando a atividade pesqueira.
Não estou aqui tomando partido dos pescadores contra os ruralistas. Apenas condeno a visão imediatista, pragmática e individualista que domina o Comitê. Os pescadores também se tornaram individualista, imediatistas e predadores. Contudo, o Comitê é rude. A maioria dos seus membros quer soluções imediatas para o curso final. Os culpados pela situação em que nos encontramos são sempre os outros. Eles, os outros, também têm culpa pelo estado geral da bacia. Mas nós não estamos perguntando que estragos causamos ao delta. Não estamos discutindo o que podemos fazer para melhor as condições do rio. Não queremos admitir que também provocamos muitos danos. Não queríamos água porque ela ocupava a terra para plantar e criar. Pedimos drenagem. O DNOS drenou demais. Agora queremos água. Quando os rios Paraíba do Sul e Ururaí enchem, não contam mais com reservatórios naturais para acumulação. E a destruição continua, como verificado na lagoa do Campelo.
E ainda pedimos ajuda ao herói trapalhão Chapolim Colorado. Como dizia Saturnino de Brito, é preciso recomeçar com humildade e paciência. É preciso parar de chorar e fazer a nossa parte. Os escândalos dominam o Brasil. Petrolão, governo federal fraco e golpista, operação Carne Fraca... Tudo isso desvia nossa atenção de mudanças sorrateiras que nos parecem insignificantes e inócuas. São mudanças estruturais e em longo prazo que vão tornar a região ainda mais pobre. As coisas vão mudar, mas para pior.

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    Aristides Soffiati

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