Dia Mundial da Água
21/03/2017 19:51
Dia Mundial da Água
Arthur Soffiati
 
No dia mundial da água, existe muita hipocrisia, assim como nos outros dias dedicados a outros componentes da indivisível natureza. É hipocrisia porque enaltecemos a água num dia especial para a destruirmos efetivamente durante os outros dias do ano. Na verdade, mesmo no dia consagrado à água, as atividades econômicas que dependem dela, e praticamente todas dependem, deixam de explorá-la em sua homenagem.
Nós, humanos, todos integrantes de uma civilização globalizada, o que significa ocidentalizada, ficamos felizes por existir água doce, pois não vivemos da água salgada. Mas não nos interessa saber que a água doce representa uma ínfima parcela de toda a água do mundo, superficial e subterrânea. A bacia do Amazonas, a maior do mundo, é insignificante se comparada à água dos oceanos.
Além do mais, pelo ciclo da água, a dependência entre água salgada e água doce é íntima. A água doce corre pelos continentes e chega aos mares, tonando-se salgada, mas o calor do sol e os ventos produzem a evaporação da água dos oceanos, que se transforma em nuvens, que se precipitam como chuvas e voltam aos continentes.
Como é bela a natureza! Exclamarão os românticos. Deus a criou perfeita. E nós estamos estragando tudo. O ser humano não é destruidor por natureza. É a economia de mercado, que domina o mundo todo, que o torna imediatista, individualista e consumista. Existe o individualismo, o imediatismo e o consumismo de empresas. O chamado agronegócio consome a maior parte da água doce do mundo enquanto os governantes pedem para cada indivíduo fazer a sua parte. Economia de água é coisa para cachorro pequeno. O consumo de grandes porções dela é para cachorro grande sob o pretexto de produzir alimentos para matar a fome da humanidade. Outra grande mentira. Trata-se de usar a água para produzir alimentos e ganhar dinheiro com eles. Quando não estragados e contaminados.
Por um lado, a água doce se torna um bem natural e coletivo cada vez mais raro. No século XIX era considerado um bem abundante e, portanto, fora do mercado. Hoje, a tendência é cada vez mais transformar a água doce em mercadoria, mesmo em estado bruto. Além do mais, este bem indispensável para toda a forma de vida está sendo impiedosamente poluído. Leiam a história de rios límpidos no passado que se transformaram em valas negras. Hoje, um rio é destino de esgoto e lixo, transporta fertilizantes químicos e agrotóxicos.
Por outro lado, as águas oceânicas também são fundamentais à vida. Os humanos retiram delas muitos bens e serviços. Mas, além de contaminadas, elas estão sendo esvaziadas de vida. Se os rios são conspurcados, todos os dejetos lançados neles terminam no mar, que, por sua vez, recebem resíduos diretamente. Além do mais, estão sendo esvaziados pela acidez cada vez maior e pela sobrepesca.
O drama das águas parece distante de nós, mas ele está bem perto. O que nos falta é interesse pelo que existe ao nosso redor, pela nossa história e geografia. Os naturalistas que passaram pelo norte e noroeste fluminenses há duzentos ou cento e cinquenta ou mesmo há cem anos ficaram deslumbrados com a quantidade e a qualidade das águas continentais, com as florestas e com a fauna nativa.
Na zona serrana e nos tabuleiros, a água estava nos rios e no solo. As florestas a protegiam. Na planície fluviomarinha, ela se acumulava em extensas lagoas. No século XVII, colonos de origem europeia, os Sete Capitães, optaram por converter a imensa planície deltaica em terras para a agropecuária. Era o que o mercado queria. Para isto, contudo, era preciso drenar as lagoas. Só no século XX, foi possível mover uma guerra impiedosa contra as lagoas sob pretexto de combater endemias.
Grandes volumes de água foram lançados ao mar. De extremamente úmida, a planície fluviomarinha tornou-se semiárida. Assim, foram extintos fabulosos ecossistemas aquáticos e a atividade pesqueira foi drasticamente afetada. Se, no passado, o grande problema para a agropecuária e a agroindústria era o excesso de água, agora é escassez dela. O sul capixaba e o norte/noroeste fluminense sofreram uma descomunal hidrorragia.
Mesmo assim, há sinais claros de que continuamos considerando a água como um bem abundante e inesgotável. No entanto, a notícia difusa de que se pretende construir uma barragem no trecho final do Paraíba do Sul para a acumulação de água é sinal de que entramos em outro tempo. A barragem será desastrosa. No nosso imediatismo, queremos resolver um problema criando muitos outros no futuro, sem nenhuma preocupação com eles. Que nossos herdeiros resolvam amanhã os problemas que criamos hoje.
Há como minorar a crise hídrica que assola o norte/noroeste fluminense, o sul capixaba e toda a Região Sudeste, mas os herdeiros daqueles que provocaram a destruição não permitirão que tais medidas, que reduzam os problemas, sejam implementadas.
Portanto, não festejo o dia mundial da água. Pelo contrário, cubro-me com trajes de luto nele.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Aristides Soffiati

    [email protected]